O que apontam os dados do Censo Demográfico de 2022 sobre a mobilidade urbana e regional no estado de Santa Catarina?
Por João Henrique Zoehler Lemos
Doutorando em Geografia, UFSC
Bolsista do UNIEDU/FUMDES
O IBGE divulgou, recentemente, mais um resultado preliminar do Censo Demográfico 2022, dessa vez sobre os “Deslocamentos para trabalho e para estudo”. É uma radiografia da mobilidade urbana e regional a nível nacional. Iniciativa de grande valia para nós, estudiosos da circulação, transportes e logística em contextos tão diversos como os que temos no território brasileiro. O levantamento traz recortes importantes, como a divisão modal – algo inédito, pela primeira vez no Censo –, o tradicional tempo de deslocamento, o local de exercício do trabalho, entre outros [1]. Diante desses dados, estas breves notas terão como recorte territorial para análise o estado de Santa Catarina.
Um dado chama a atenção de antemão: no estado catarinense, o império do automóvel é gritante e atinge a maior proporção do país, com pouco mais de 47% de participação na matriz modal dos deslocamentos entre casa e trabalho em geral – considerando-se o mesmo município, outro município e outro país como local de trabalho (figura 1).
Figura 1 – Santa Catarina: matriz modal do meio de transporte utilizado, em % (2022)
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2022 (IBGE, 2025a).
Juntos, automóveis e motocicletas têm 60% de participação. Mesmo com densidades demográficas elevadas em algumas porções do estado, dinâmicas econômicas intensas e especializações regionais insumidoras de mão de obra, a participação do ônibus, meio de transporte central para o transporte público, é de apenas 12% (tabela 1).
Tabela 1 – Santa Catarina: matriz modal do meio de transporte utilizado para o deslocamento ao trabalho, conforme os municípios polo de Região Geográfica Imediata, em % (2022)
| Município | Total | Automóvel | Motocicleta | Automóvel + motocicleta | Ônibus | A pé | Bicicleta | Outros |
| Araranguá | 100 | 53 | 17 | 70 | 3 | 14 | 9 | 0 |
| Blumenau | 100 | 52 | 9 | 61 | 19 | 12 | 3 | 1 |
| Brusque | 100 | 52 | 15 | 67 | 9 | 13 | 7 | 0 |
| Caçador | 100 | 51 | 5 | 56 | 22 | 17 | 0 | 0 |
| Chapecó | 100 | 53 | 14 | 67 | 13 | 15 | 1 | 0 |
| Concórdia | 100 | 47 | 17 | 64 | 7 | 24 | 1 | 0 |
| Criciúma | 100 | 54 | 9 | 63 | 15 | 15 | 3 | 1 |
| Curitibanos | 100 | 60 | 5 | 65 | 8 | 21 | 2 | 0 |
| Florianópolis | 100 | 42 | 7 | 49 | 27 | 16 | 4 | 0 |
| Herval d'Oeste | 100 | 51 | 18 | 69 | 5 | 22 | 1 | 0 |
| Ibirama | 100 | 54 | 12 | 66 | 4 | 17 | 5 | 0 |
| Itajaí | 100 | 39 | 20 | 59 | 6 | 12 | 18 | 0 |
| Ituporanga | 100 | 60 | 10 | 70 | 3 | 19 | 6 | 0 |
| Joaçaba | 100 | 54 | 13 | 67 | 7 | 23 | 0 | 0 |
| Joinville | 100 | 45 | 9 | 54 | 21 | 9 | 10 | 0 |
| Lages | 100 | 52 | 6 | 58 | 16 | 20 | 3 | 0 |
| Mafra | 100 | 56 | 12 | 68 | 6 | 16 | 5 | 0 |
| Maravilha | 100 | 53 | 16 | 69 | 3 | 22 | 5 | 1 |
| Presidente Getúlio | 100 | 42 | 13 | 55 | 1 | 18 | 18 | 1 |
| Rio do Sul | 100 | 59 | 9 | 68 | 6 | 17 | 5 | 0 |
| Rio Negrinho | 100 | 51 | 7 | 58 | 16 | 19 | 2 | 1 |
| São Bento do Sul | 100 | 56 | 8 | 64 | 15 | 15 | 2 | 0 |
| São Lourenço do Oeste | 100 | 53 | 9 | 62 | 11 | 24 | 1 | 0 |
| São Miguel do Oeste | 100 | 59 | 14 | 73 | 4 | 19 | 1 | 0 |
| Tubarão | 100 | 49 | 20 | 69 | 3 | 16 | 9 | 1 |
| Videira | 100 | 53 | 13 | 66 | 10 | 20 | 0 | 0 |
| Xanxerê | 100 | 62 | 9 | 71 | 4 | 19 | 2 | 0 |
| Santa Catarina | 100 | 47 | 13 | 60 | 12 | 17 | 7 | 4 |
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2022 (IBGE, 2025a).
A análise atenta dos dados de deslocamento do IBGE, confrontada com o arcabouço teórico e crítico de nossa disciplina, a Geografia, revela desafios para a mobilidade do trabalho no estado catarinense. Sobretudo para o transporte público, este se encarado enquanto um meio de consumo coletivo central para a reprodução da vida urbana, como nos legou Jean Lojkine (1997) e sua rigorosa análise da urbanização capitalista a partir da Sociologia Urbana alicerçada na Economia Política.
E não se trata de um problema de congestionamento ou infraestrutura somente, mas é a expressão de uma crise geral sobre o modo com que o transporte coletivo de passageiros vem sendo encarado ao longo das décadas. É um serviço de utilidade pública essencial, responsável pela oferta de transporte municipal e intermunicipal, que tem abaladas a sua eficácia e abrangência. O resultado é a imposição de um “custo temporal” e uma baixa participação do transporte público na matriz modal de deslocamentos, algo amplamente injusto à força de trabalho, que penaliza as condições de integração territorial ou a torna mais dificil, e impacta na produtividade e na qualidade de vida.
Antes de abordarmos os dados propriamente ditos, destacamos desde já a crise generalizada do sistema de transporte coletivo intermunicipal de passageiros no estado e a consequente hegemonia incontestável do transporte individual por meio de automóveis e motocicletas. Os trabalhos de Cocco (2019) e Lemos (2025) abordaram o tema do transporte público catarinense, nas escalas metropolitana e estadual. Os autores destacaram que entre 2000 e 2023, os deslocamentos por meio do que podemos chamar de transporte público regional sofreu com a queda de 70% do total de passageiros movimentados e teve a redução de mais de 60% no total de viagens realizadas. Tal cenário estrutural aponta que houve a transferência da demanda de maneira maciça para outras opções, sobretudo carros e motocicletas, bem como – no período mais recente – plataformas e seus aplicativos que capturam a demanda do transporte público.
Os recentes dados do Censo de 2022 refletem a pendularidade entre e nos municípios catarinenses e o domínio dos transportes individuais. No universo da amostra, 11% dos trabalhadores realizam deslocamentos para outros municípios e 88% trabalham no mesmo município de domicílio. Do conjunto de fluxos pendulares intermunicipais, 18% utilizam ônibus e 71% utilizam automóveis e motocicletas. Já na escala municipal, o ônibus enquanto meio de transporte representa apenas 11%, enquanto automóveis e motocicletas contabilizam 58% de participação.
Se considerarmos o recorte das Regiões Geográficas Imediatas (RGI), todas as regiões têm percentuais superiores a 50% para a participação de automóveis e motocicletas na divisão modal. As RGI de Ituporanga, Brusque, Chapecó, São Miguel do Oeste, Rio do Sul e Tubarão se aproximam de 70%. A RGI de Florianópolis, onde está abarcada a Região Metropolitana de Florianópolis (RMF), contabiliza 54% de automóveis e motocicletas, tendo os ônibus uma participação de 22% – a maior do estado, resultado sobretudo da mais densa pendularidade metropolitana e sua urbanização contígua e complexa.
Em termos de matriz modal para deslocamentos municipais, automóveis e motocicletas têm primazia e o ônibus só tem algum destaque nas regiões mais urbanizadas. Na já mencionada RMF, o ônibus tem participação de 26,84% em Florianópolis (figura 2), 23,76% em São José e 17,55% em Palhoça – o que aponta, entra outras coisas, para reduzida atratividade dos sistemas municipais, especialmente no último município – especialmente por baixa qualidade e abrangência. Em outros centros, Caçador apresenta 22,41% de participação, Joinville tem 21,04%, Blumenau tem 18,88%, Lages tem 15,86%, Criciúma tem 14,72%, Chapecó conta com 13,40%, Jaraguá do Sul aponta 11,64% etc. (tabela 2).
Figura 2 – Florianópolis: matriz modal do meio de transporte utilizado, em % (2022)

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2022 (IBGE, 2025a).
Em termos de tempo de deslocamento, há um “imposto do tempo” pago pela população que reside na fixa litorânea catarinense. As debilidades existentes no planejamento territorial – quando existente – para a mobilidade urbana e regional resulta em ampla ineficácia social, traduzida entre outras coisas em elevados tempos de deslocamento. Os municípios com o custo temporal mais alto, onde a menor parcela da população tem o deslocamento mais rápido, concentram-se no litoral e no eixo da RMF. Ao tratarmos dos deslocamentos realizados em até 5 minutos, Camboriú (6,79%), Joinville (8,06%), São José (8,09%), Florianópolis (8,29%) e Itajaí (9,11%) alcançaram as menores porcentagens. Na RMF há municípios que estão entre os com maior percentual de deslocamentos entre 30 minutos e 2 horas: São Pedro de Alcântara (34,28%), Águas Mornas (32,62%), Antônio Carlos (27,99%). Em Florianópolis, apesar de uma parcela significativa realizar deslocamentos em até 5 minutos (8,29%), 6 a 15 minutos (25%) e de 15 a 30 minutos (34%), há 30% que levam de 30 minutos a 2 horas. A “vantagem” de Florianópolis é reduzida quando nos atentamos ao recorte da população que utiliza ônibus, pois o tempo de 30 minutos a mais de 2 horas alcança 60% (tabela 2).
Tabela 2 – Santa Catarina: vinte municípios com maior participação absoluta do ônibus como meio de transporte utilizado para o deslocamento ao trabalho, no mesmo município, e participação percentual do ônibus e seu tempo de deslocamento (2022)
| Município | Amostra | Ônibus | |||||||
| Total | Usa ônibus | % de part. | Tempo médio de deslocamento (%) | ||||||
| Até 5 min. | 6 min.-15 min. | 15 min.-30 min. | 30 min.-1 hora | 1 hora-2 horas | Mais de 2 horas | ||||
| Florianópolis (SC) | 205.339 | 56.322 | 27% | 1% | 8% | 31% | 39% | 20% | 1% |
| Joinville (SC) | 255.484 | 53.936 | 21% | 0% | 5% | 26% | 49% | 20% | 0% |
| Blumenau (SC) | 161.882 | 30.899 | 19% | 1% | 9% | 36% | 40% | 14% | 0% |
| Chapecó (SC) | 117.407 | 15.732 | 13% | 1% | 13% | 45% | 34% | 7% | 0% |
| São José (SC) | 80.048 | 15.636 | 20% | 0% | 12% | 48% | 32% | 6% | 0% |
| Criciúma (SC) | 84.820 | 12.690 | 15% | 1% | 10% | 49% | 33% | 7% | 0% |
| Lages (SC) | 66.004 | 10.251 | 16% | 1% | 8% | 47% | 36% | 8% | 0% |
| Jaraguá do Sul (SC) | 79.787 | 9.294 | 12% | 1% | 12% | 47% | 35% | 5% | 0% |
| Palhoça (SC) | 64.580 | 8.315 | 13% | 1% | 9% | 40% | 33% | 15% | 1% |
| Caçador (SC) | 29.818 | 6.696 | 22% | 3% | 22% | 56% | 17% | 2% | 0% |
| Itajaí (SC) | 110.374 | 6.106 | 6% | 1% | 7% | 42% | 39% | 11% | 0% |
| Brusque (SC) | 62.328 | 5.302 | 9% | 1% | 13% | 48% | 33% | 5% | 0% |
| São Bento do Sul (SC) | 34.737 | 5.113 | 15% | 1% | 14% | 44% | 37% | 4% | 0% |
| Videira (SC) | 24.276 | 2.435 | 10% | 2% | 20% | 54% | 23% | 1% | 0% |
| Biguaçu (SC) | 18.748 | 2.372 | 13% | 1% | 14% | 37% | 40% | 9% | 0% |
| Concórdia (SC) | 34.769 | 2.325 | 7% | 0% | 16% | 56% | 25% | 2% | 0% |
| Capinzal (SC) | 9.570 | 2.096 | 22% | 1% | 45% | 32% | 6% | 14% | 0% |
| Rio Negrinho (SC) | 13.950 | 2.012 | 14% | 3% | 29% | 45% | 21% | 2% | 0% |
| Gaspar (SC) | 27.959 | 1.969 | 7% | 1% | 16% | 50% | 26% | 8% | 0% |
| Fraiburgo (SC) | 11.618 | 1.820 | 16% | 2% | 15% | 50% | 25% | 8% | 0% |
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2022 (IBGE, 2025a).
No conjunto de deslocamentos intermunicipais por ônibus, a participação é maior somente nas aglomerações urbanas mais consolidadas, como em São José (35%), Biguaçu (33%), Araquari (29%, Palhoça (29%), Santo Amaro da Imperatriz (18%), entre outras. No Oeste do estado a participação é reduzida, assim como na maior parte do entorno das capitais regionais, dado o “apagão” que vem recaindo sobre os ônibus regionais que compreendem o transporte rodoviário intermunicipal de passageiros do estado – em municípios como Cordilheira Alta, Xaxim, Pinhalzinho, Herval d’Oeste, Guatambú, São Carlos etc., cidades que estão próximas a centros urbanos com papeis industriais relevantes a participação do ônibus no deslocamento intermunicipal não chega a 10%.
Entre os 50 municípios que mais têm o ônibus como meio de transporte para o acesso a outros centros, o tempo de deslocamento de 30 minutos a 2 horas tem uma média de 67% de participação. Nos maiores centros urbanos do estado ultrapassa os 80%, como Palhoça, com 83% dos usuários de ônibus levando o tempo mencionado nos deslocamentos entre municípios, e 40% dos trabalhadores levando de 1 hora a 2 horas. Ou seja, o deslocamento intermunicipal, especialmente por ônibus, é um inimigo às viagens rápidas e impõe ao trabalhador um elevado custo diário de circulação. Algo que inadiavelmente se acumula no saldo de horas diárias improdutivas e mutila justamente a força de trabalho, um paradoxo para a própria dinâmica econômica (tabela 3).
Tabela 3 – Santa Catarina: trinta municípios com maior participação relativa de trabalhadores que levam mais de 1 hora a 2 horas no deslocamento ao trabalho, no mesmo município ou em outro local, conforme os dois últimos recenseamentos (2010/2022)
| Município | 2010 | 2022 |
| Entre Rios (SC) | 12,42 | 47,20 |
| Monte Carlo (SC) | 9,37 | 29,25 |
| São Pedro de Alcântara (SC) | 6,69 | 28,26 |
| Forquilhinha (SC) | 3,03 | 26,87 |
| Capinzal (SC) | 0,88 | 25,98 |
| Papanduva (SC) | 2,62 | 24,49 |
| Águas Mornas (SC) | 12,94 | 24,35 |
| Ipuaçu (SC) | 8,72 | 20,74 |
| Balneário Rincão (SC) | - | 19,26 |
| Bela Vista do Toldo (SC) | 2,30 | 18,47 |
| Ponte Serrada (SC) | 12,57 | 18,11 |
| Antônio Carlos (SC) | 9,80 | 17,90 |
| Palhoça (SC) | 9,75 | 16,82 |
| Florianópolis (SC) | 7,53 | 15,61 |
| Angelina (SC) | 2,02 | 15,58 |
| Zortéa (SC) | 1,49 | 14,91 |
| Joinville (SC) | 5,64 | 14,82 |
| Matos Costa (SC) | 5,26 | 14,77 |
| Timbó Grande (SC) | 3,57 | 14,24 |
| Santo Amaro da Imperatriz (SC) | 12,83 | 14,10 |
| Biguaçu (SC) | 6,53 | 13,86 |
| Imaruí (SC) | 2,63 | 13,48 |
| Governador Celso Ramos (SC) | 10,17 | 13,24 |
| Barra Velha (SC) | 2,99 | 12,75 |
| São José do Cerrito (SC) | 2,10 | 12,69 |
| Paial (SC) | 23,26 | 12,68 |
| Santa Terezinha do Progresso (SC) | 3,51 | 12,66 |
| Balneário Arroio do Silva (SC) | 3,06 | 12,33 |
| Vargem Bonita (SC) | 6,40 | 11,49 |
| Araquari (SC) | 12,92 | 11,44 |
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010 e 2022 (IBGE, 2025a; 2025b).
O município de Balneário Camboriú figura entre os que tem a menor participação do ônibus na matriz modal, que alcança apenas 2,72% nos deslocamentos intramunicipais, enquanto a participação do uso de automóveis e motocicletas é de 50%. Mesmo com a política de tarifa zero, o serviço tem demonstrado baixa eficácia ao longo dos anos, com a rotatividade da empresa operadora e baixa qualidade da frota em operação, frequentemente de segunda mão, com passagem por outras cidades brasileiras. Ainda no contexto de Balneário Camboriú, a mobilidade intermunicipal é capitaneada por automóveis e motocicletas, que alcançam 81,47% da matriz modal; enquanto isso, o transporte intermunicipal por ônibus representa somente 6,59% no âmbito da amostra, baixo para uma realidade de urbanização adensada, conurbada a Itajaí e Camboriú – parte do problema está na fragmentação dos sistemas, em que cada município cuida de suas operações de maneira solitária, agravado pela desarticulação institucional em relação às operações intermunicipais, comandadas pelo governo do estado.
Ao considerarmos somente o ônibus como meio de transporte, os dados apontam maiores tempos de deslocamento no transporte público. Em Florianópolis, 40% dos que utilizam o ônibus como meio de transporte gastam de 30 minutos a 1 hora, e 20% gastam de 1 hora a 2 horas, ou seja, 60% dos usuários de ônibus levam de 30 minutos a 2 horas diariamente. Em outros centros urbanos, o tempo gasto nos ônibus, de 30 minutos a 2 horas, é elevado: Joinville (68%), Camboriú (54%), Blumenau (53%), São Francisco do Sul (52%), Itajaí (50%), Balneário Camboriú (48%), Biguaçu (48%), Itapoá (48%), Palhoça (48%) etc.
Em contraste, naquelas cidades pequenas típicas existentes no estado, temos uma maior proximidade entre moradia e trabalho. Arroio Trinta (48,5%), Celso Ramos (46,54%) e Peritiba (43,56%) registram quase metade da população na faixa de deslocamento em até 5 minutos. Essa grande disparidade demonstra o resultado de diferentes modelos de uso do solo, dispersão do tecido urbano, planejamento territorial precário (praticamente inexistente!) e outras mazelas, como a especulação imobiliária, hierarquização viária ineficiente etc.
Ressaltamos: vem se processando, com resultados já dados, uma crise nos sistemas de transportes públicos no estado, sejam eles da escala intermunicipal ou dos municípios. Se considerarmos a RMF, exemplo frequente de caos em termos de mobilidade urbana, a essência dessa crise não está somente na singularidade geográfica dessa região, constituída primeiramente pela dinâmica entre a Ilha de Santa Catarina e a porção continental; ou ainda o traçado viário complexo, repleto de servidões, ruas estreitas, ausência de faixa e corredores exclusivos e/ou preferenciais etc. – embora esse quadro insular seja um fator de complexidade que, em tese, deveria impulsionar o planejamento à incorporação de tecnologia “estado da arte” em termos de transportes públicos. O grande elemento é a ausência de um desenvolvimento institucional, que de fato coordene as redes que propiciam serviços públicos de transporte coletivo. Ou seja, carecemos de um Estado planejador capaz de contornar as próprias característica da formação regional e que oferte soluções a preços módicos e atraentes à população.
Ao considerarmos o estudo de Cocco (2019), podemos arrolar uma série de elementos. A começar pela urbanização dispersa e desigual, tema que nos instiga à análise. A concentração histórica de empregos e atividades na Ilha de Santa Catarina, combinada com a expansão urbana recente, levou à concentração de produtos imobiliários de luxo em áreas de alta acessibilidade e à interiorização de segmentos sociais de baixa renda em espaços periféricos e monofuncionais. Essa estrutura espacial exige a pendularidade e o domínio do modal individual, resultando no crescimento de cerca de 300% da frota de automóveis em Palhoça entre 2002 e 2024.
Temos a implantação e reprodução contínua de paradigmas ultrapassados e que pouco se encaixam à realidade da RMF. O planejamento de transporte na RMF e no estado catarinense, em geral, emula (sem sucesso) modelos acriticamente importados de outras realidades e se baseia na mera expansão do sistema viário, ignorando a necessidade de subsídios aos transportes públicos, integração interinstitucional e entre os entes federativos (mormente, municípios e estado). Além disso, o planejamento hipoteticamente existente ignora completamente políticas contundentes de mescla de usos do solo e maior diversificação e integração modais de modo a socializar de uma forma menos desigual o dinamismo geoeconômico do litoral catarinense.
Para concluirmos, destacamos o grande motor para o quadro, que é a fragilidade regulatória e política das instituições. O sistema de transporte intermunicipal opera sob um pacto normativo arcaico (leis da década de 1980), resultando em insegurança jurídica, falha no planejamento e ausência de ações de robustecimento da qualidade. A fragilidade dos órgãos públicos (como o extinto DETER) e a fragmentação de responsabilidades (entre SIE e ARESC, além da divisão entre sistemas intermunicipal e municipal) fragilizam o Estado e facilitam a interferência de agentes privados na definição de políticas – operam em um quadro de “insularidade normativa”, realidade de boa parte do país. Soma-se a isso o fato de que a criação artificial de dezenas de regiões metropolitanas ao longo dos anos não resultou em efeitos concretos, para além de elementos ideais de legislações estaduais, dado que não há qualquer tipo de política efetiva e tangível em termos de transporte público metropolitano no estado, nem mesmo na RMF.
Conclui-se que o alto custo temporal e a dependência do modal individual, quantificados preliminarmente neste texto não são acidentais. São o resultado da manutenção de uma superestrutura política e institucional despreparada para o presente, algo bastante estranho. É contraditório para um estado que se projeta como inteligente, competitivo e atrativo para novos investimentos. Até se trata disso em partes, mas a socialização dos benefícios ocorre a uma parcela diminuta, em detrimento da população como um todo, que realiza deslocamentos cotidianos de formas precárias, com longas jornadas entre casa e trabalho, enquanto se afasta das benesses do discurso promovido pelos ideólogos da competitividade, de um estado moderno e smartizado.
Para reverter o cenário e buscar um contexto de maior justiça espacial, é imperativo superarmos os velhos paradigmas no tema da mobilidade e acessibilidade urbana e regional, fortalecermos as instituições públicas de planejamento e provermos sistemas de transportes coletivos de passageiros que sejam, de fato, à altura de promoverem uma mínima atração e competição diante dos modais individuais – carros, motocicletas e mesmo aplicativos de transporte e suas plataformas que pouco contribuem para a dinâmica diária da circulação.
Notas
[1] No Censo Demográfico 2022, o questionário contempla as pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência, que, no trabalho principal, trabalhavam fora do domicílio e retornavam 3 dias ou mais na semana do trabalho para o domicílio, levando em consideração o tempo de deslocamento do domicílio até o local de trabalho principal, considerando o meio de transporte em que passa mais tempo para chegar ao local de trabalho principal.
Referências
COCCO, Rodrigo Giraldi. A reprodução de velhos paradigmas em políticas de transporte e mobilidade: uma análise da Região Metropolitana de Florianópolis. Revista Transporte y Territorio, Buenos Aires, n. 20, p. 214-245, ene./jun. 2019.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. SIDRA - Sistema IBGE de Recuperação Automática. Tabela 10330 - Pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência [...]. 2025a. Disponível em: http://sidra.ibge.gov.br. Acesso em: 16 out. 2025.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. SIDRA - Sistema IBGE de Recuperação Automática. Tabela 3604 - Pessoas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência [...]. 2025b. Disponível em: http://sidra.ibge.gov.br. Acesso em: 16 out. 2025.
LEMOS, João Henrique Zoehler. Dinâmicas territoriais e crise no transporte público regional catarinense. PerCursos, Florianópolis, v. 26, e0302, 2025.
LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.








