Mobilidade urbana, transporte individual e transporte público coletivo: bases para uma discussão incompleta

06/07/2011 12:00

Márcio Rogério Silveira

Professor do Departamento de Geociências e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFSC e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP, Campus de Presidente Prudente/SP

Líder do Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infraestruturas (GEDRI)

Pesquisador do CNPq

Sobre as discussões que tratam da mobilidade urbana procuramos retratar, nesse espaço, de um aspecto fundamental: a eficiência do transporte público coletivo versus a taxação da produção e uso do transporte individual. Informo ao leitor que essa reflexão é fruto de trabalhos acadêmicos anteriores, mas foi incitada pelo “Seminário de Mobilidade Urbana: Marco Regulatório e Novos Modais de Transportes de Massa em Florianópolis e Região”, promovido pelo Mandato da deputada Ângela Albino do PC do B de Santa Catarina, em 30 de junho de 2011.
Nesse sentido, observamos, no seminário, discussões que afirmam que a melhor forma para intensificar o uso do transporte público coletivo é através da diminuição da produção e do uso transporte individual (carros e motos). Isso, segundo algumas perspectivas, ocorreria por:
• Maior taxação na produção de autos, como o aumento do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados).
• O aumento dos impostos de propriedade e uso, como do IPVA (Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores), entre outros.
• Aumento na taxação de uso de espaços públicos para circulação e guarda dos automóveis individuais, como as denominadas “Zona Azul”, pedágios urbanos e interurbanos e a proibição de circulação e de estacionamento em áreas de intensa fluidez no espaço da cidade. A proibição de circulação e de estacionamento em espaços mais densos e com elevada viscosidade é uma das medidas importantes para aumentar a acessibilidade e a mobilidade urbana, mas deve ser associada a outras políticas públicas referentes ao planejamento urbano e não deve ser socialmente e espacialmente segregacionista, como através dos pedágios e cobranças de estacionamento em vias públicas.
Muitas dessas políticas públicas são estruturalmente equivocadas já que o aumento dos custos de compra e uso dos automóveis individuais interfere negativamente no equilíbrio macroeconômico alcançado no governo Lula da Silva. Isto é, a cadeia produtiva do setor automobilístico é importante para o desenvolvimento nacional, pois não só as montadoras, mas as indústrias de autopeças, os comércios de automóveis, peças e os serviços diversos (como o de manutenção) contribuem para o desenvolvimento nacional através da geração de emprego, renda, poupança, consumo e reinvestimentos produtivos tanto da iniciativa privada quanto do poder público.
Esses aspectos – denominados na teoria keynesiana de demanda efetiva – geram um efeito permanente e ascendente, ou seja, um efeito multiplicar na economia nacional e o status do pleno emprego. No caso brasileiro o incentivo a aquisição de automóveis (facilitação, em especial, do crédito) ajudou o país a superar, entre 2008 e 2010, a crise que atingiu várias economias mundiais, aumentado a produção e fortalecendo o capital financeiro nacional (maior competitividade e baixa de juros apesar de altas taxas da SELIC – Sistema Especial de Liquidação e Custódia). Portanto, desaquecer o mercado de automóveis pelo aumento dos custos de aquisição e uso do automóvel é também inibir o desenvolvimento econômico. Esse fator também causaria o contrário do que esperamos: uma diminuição ou rompimento do efeito multiplicador, ou seja, a diminuição ou eliminação de empregos e da renda de milhares, senão milhões, de brasileiros: diminuição do consumo, fator-chave do nosso desenvolvimento. Vale a pena também destacar que tal medida reflete numa política neoliberal de desindustrialização, numa diminuição do ritmo do capitalismo brasileiro e até mesmo inibe a queima de etapas das mudanças nas relações de produção e de trabalho que podem levar uma economia dos padrões capitalista para o socialista. Portanto, a mobilização contra a produção de automóvel é, até mesmo para a esquerda, um “tiro no próprio pé”.
Assim, essa medida, difundida por muitos intelectuais de esquerda (que provavelmente são integrantes do segmento médio abastado da sociedade e não pretendem facilmente “abrir mão” do uso diário do automóvel), redunde também numa visão segregacionista, muito próxima da que observamos ser recentemente difundida pela mídia ultraconservadora de Santa Catarina. Lembramos que tanto a direita conservadora quanto a esquerda elitizada faz políticas públicas classistas e, muitas vezes, só conseguimos separá-los pela vestimenta. A limitação ao acesso ao automóvel é uma medida segregacionista porque quem possui um grau mediano ou elevado de poder de consumo não “abrirá mão” do transporte individual, mesmo que tenha que pagar pedágio urbano e interurbano, que tenha limitação de circulação e de estacionamento, que tenha os impostos da compra e do uso dos automóveis aumentados. Os mais afetados por medidas segregacionistas serão os seguimentos mais baixos da sociedade que, pela primeira vez na história, estão tendo acesso facilitado à compra e uso de automóveis individuais. O aumento dos custos de circulação também é negativo, pois consome parte da renda do trabalhador, renda que pode ser utilizada para o lazer, a alimentação, a educação, a moradia, ou seja, para o consumo de bens muito mais saudáveis para o desenvolvimento macroeconômico.
O trabalhador precisa de transporte eficiente para levar seus filhos às escolas, ir para o trabalho, fazer compras (já que lojas de departamentos, grandes supermercados encontram-se desconcentrados, situados a margem de grandes avenidas e de difícil acesso ao transporte público) e para o lazer. Ainda, uma parcela desses segmentos mais baixos da sociedade necessita do automóvel para reproduzir sua existência e de sua família, pois são pedreiros, carpinteiros, pintores, prestadores de serviços diversos que usam esse tipo de condução para sua sobrevivência já que eles servem para transportar seus instrumentos de trabalho. Além do mais também o aumento dos custos da prestação de serviços desses segmentos incidirão no aumento dos preços dos serviços que toda a sociedade consome. Lembramos, por conseguinte, que ter automóvel não significa utilizá-los diariamente, pois em muitos países (Europa e Ásia, por exemplo) há uma massa considerável da população que possui automóvel, mas não os utilizam para todos os fins de mobilidade, como na Alemanha, na França, na Coréia do Sul e outros. Nestes países a acessibilidade e a mobilidade urbana são facilitadas, pela qualidade e pelo preço das tarifas dos transportes públicos coletivos e pelas infraestruturas e meios de consumo coletivos urbanos adequados a uma forma de mobilidade coletiva, ou seja, para isso, facilita-se também a acessibilidade dos citadinos.
Portanto, nossa conclusão incide que as medidas de limitação de compra e uso do automóvel individual são equivocadas para solucionar o problema da mobilidade urbana, pois as mesmas terão um efeito macroeconômico negativo. No “frigir dos ovos” o resultado dessas políticas é mais negativo que positivo. As soluções são, por conseqüência, outras. Então, quais são as soluções para os problemas da mobilidade urbana? Qual o melhor planejamento para resolver esse problema em cidades como Florianópolis? São soluções que pretendemos desenvolver nos artigos seguintes, mas adiantaremos algumas agora, como:
• Não há um modelo geral para resolver os problemas de acessibilidade e mobilidade em todas as cidades. Cada espaço tem sua especificidade que precisa ser analisada com muito cuidado, como os parâmetros de sua formação e desenvolvimento (social, econômica e cultural), a posição e a situação geográfica, o relevo, a hidrografia, ou seja, uma serie de aspectos físicos, biológicos e humanos que combinados dão a determinada cidade uma “personalidade” própria. Temos certo que essa minha afirmação é uma provocação para muitos engenheiros, arquitetos e outros planejadores que adoram os modelos universais. Modelos que são comercializados por valores abusivos, ou seja, incentivando a “indústria” dos projetos “mirabolantes”. Projetos que o poder público “adora” contratar, mas que estão disponíveis gratuitamente nas universidades públicas.
• Como afirmado no “Seminário sobre Mobilidade Urbana”, um ponto crucial é o marco regulatório que envolve os modelos de concessões, o papel do Estado, a intermediação financeira, a relação público-privado, entre outros. Nesse sentido propomos a discussão sobre concessões de serviços públicos à iniciativa privada empreitada pelo maior economista brasileiro: Ignácio Rangel. Lembramos que o marco regulatório atual é ineficiente, pois há um só aspecto nele, ou seja, elevadas taxas de retorno ao capital privado e, para isso, as prestações de serviços são precárias e as taxas dos serviços elevadas. Portanto, o modelo de concessão comum e de concessão precária tem que ser repensado.
• A melhoria do transporte público através da qualidade dos meios de transportes (como ônibus, metrôs, trens de alta velocidade, veículo leves sobre trilhos, bus rapid transit, entre outros), com condicionador de ar nos veículos, sistema de internet wireless, poltronas confortáveis, ônibus baixos para acessibilidade facilitada, menor ruído dos veículos, som ambiente, segurança, entre muitos outros.
• Melhora das vias de transportes para o transporte público coletivo, como corredores exclusivos e preferências, vias com boas infraestruturas, pontos de origem-destino eficientes e em locais estratégicos e com fácil e segura acessibilidade.
• Gerenciamento público eficiente dos sistemas de transporte público coletivo, como preço justo das tarifas (em parte subvencionados pelo poder público e pela iniciativa privada), linhas eficientes em pólos geradores de tráfegos, entre outros.
• Plano Diretor de Transporte em harmonia com o Plano Diretor das cidades, pois fatores como adensamento, espraiamento, origem de novas centralidades e de áreas urbanas, desconcentração e reconcentração das atividades econômicas, mudança nos índices urbanísticos, zoneamento urbano, entre outros que influem no planejamento do sistema viário e de transporte público coletivo da cidade, do aglomerado urbano e da região metropolitana. Planejar, mais do que isso, executar ações em conformidade com a acessibilidade e com a mobilidade urbana é uma visão totalizadora e interdisciplinar necessária ao bom “uso e usufruto” da cidade.
Outras discussões são também essenciais e, além dos pontos elencados, podem ser desdobradas para uma visão mais totalizadora e interdisciplinar a respeito das soluções para o problema da mobilidade urbana em muitas cidades, aglomerações urbanas e regiões metropolitanas. Discussões que abordaremos futuramente para somá-las ao que já iniciamos aqui. Teremos, assim, um resultado estruturante ao invés de medidas equivocadas, simplistas, interesseiras, discursivas e paliativas.

Florianópolis, 06 de julho de 2011.