O Golpe de Estado de 2016 e as políticas públicas: uma vala perigosa no caminho das políticas de mobilidade
De modo diverso às políticas de mobilidade urbana e transportes “pesadas” (VLT, BRT, Monotrilhos, metrôs etc.), discorrerei nessa ocasião sobre o caso de políticas de mobilidade auxiliares, mas que apenas aparentemente não exigem investimentos contínuos importantes. Normalmente essas políticas são abordadas quase que de modo isolado das dinâmicas políticas e econômicas mais amplas, como se a gestão e a “governança” local fossem suficientes para leva-las a cabo de modo pleno. É o caso das mobilidades não-motorizadas e em especial, da promoção de infraestruturas e serviços de bicicleta pública.
O grave momento de retrocesso político vivido pelo Brasil atualmente exige a elevação da consciência social dos diferentes grupos sociais sobre o tema da mobilidade urbana, tanto quando da saúde e da educação, os quais vem sendo fortemente ameaçados pelo governo interino. Em especial, os jovens e os novos eleitores que vem iniciando sua participação na política, com vistas a que tenham uma noção real do que o Golpe de 2016 representa em termos de interrupção de políticas públicas de seu interesse. Estes grupos, no entanto, vem sendo alvo de forte manipulação por parte dos setores golpistas nacionais e internacionais que tem atuado no país, os quais valem-se de argumentos e fórmulas simplistas de explicação da realidade. Atualmente se trava uma difícil luta no campo da formação da opinião pública, do esclarecimento sobre as implicações desse processo.
Com efeito, há grande dificuldade de aclarar a esses grupos sociais e populações, como funcionam o Estado, suas instituições e os equipamentos e serviços públicos que estas utilizam em seu cotidiano. De modo mais urgente, se trata da dificuldade em explicar como a postura e a tomada de decisões do governo interino de Michel Temer – meros valetes dos interesses do capital financeiro nacional/internacional – no campo geopolítico e das relações internacionais; na formatação das instituições; na macroeconomia e no campo social, já são uma ameaça concreta à manutenção e aos avanços dos direitos sociais, como é o caso das políticas de transporte e mobilidade.
No caso específico da mobilidade urbana, diversas iniciativas encampadas desde o Ministério das Cidades, bem como de Prefeituras que solicitaram auxílio ao Estado ao longo dos 13 anos de administração petista – com todas as limitações que já conhecemos – passam agora a serem vistas como custos a serem dirimidos. Possibilidades de aperfeiçoamento e aprofundamento dessas políticas reduzem-se praticamente a zero.
Mas como fazer-se entender? Como explicar ao cidadão comum e ao jovem que sai às ruas empunhando a nefasta bandeira neoliberal do MBL (Movimento Brasil Livre), que a ciclovia que muitos destes também defendem e que as bicicletas públicas presentes em outros países – e que tanto invejam – exigem um fortalecimento do Estado e em muitos casos recursos a fundo perdido do tesouro nacional? Vale lembrar que este movimento (MBL e outros semelhantes), ao empregar fórmulas fascistas de engajamento e um conteúdo neoliberal, lança mão de um marketing pautado em bandeiras “difusas”, misturando agendas inclusive contraditórias. Vale lembrar que nas Manifestações de junho/julho de 2013 – a qual atuou como ponta-de-lança na criação para uma “atmosfera favorável” ao Golpe de Estado de 2016 – parte do Movimento Passe Livre (MPL) se equivocou e acabou engrossando, nas ruas, as fileiras de grupos que recentemente foram decisivos para a deflagração do Golpe.
A estes jovens, mas também a todos os cidadãos interessados, afirmamos que a importância do Estado para a expansão da mobilidade não-motorizada e do uso de bicicletas se fez necessária em todos os países que tem feito desta, uma parte de suas políticas de mobilidade e transporte. Um exemplo interessante é o dos serviços de bicicletas públicas europeus, os quais poderiam ser uma possibilidade inclusive de estimulo à expansão de infraestrutura ciclável, no caso brasileiro. Ressalta-se que a razão de ser deste tipo de serviço está ligada não à oferta de lazer, mas a questões muito concretas de redução do uso diário de automóveis e de aumento da conectividade com transporte público em deslocamentos regulares (laborais, de estudos, reprodução social etc.). Os franceses, por exemplo, foram um dos pioneiros na aplicação de investimentos mais massivos em serviços de bicicletas públicas, fazendo com que Paris conte hoje com uma frota de 18.000 bicicletas públicas.
Em Barcelona, igualmente, se vem fortalecendo historicamente o uso da bicicleta por iniciativa estatal, o que tem exigindo internalização contínua de conhecimento por parte dos planejadores do Estado e aplicação continua de recursos estatais a fundo perdido, ainda que os operadores do serviço sejam privados (via concessão). Atualmente, o serviço é gerido e planejado pela empresa pública BSM (Barcelona Serviços Municipais), mas é operado pelo Grupo Clear Channel Communications, o qual detêm a expertise para a operação de uma complexa estratégia logística, baseada na predição horária de demanda e na reposição de bicicletas entre as estações cheias e vazias.
O processo de implantação e consolidação desse sistema em Barcelona começa com a criação da BSM, que é uma empresa estatal de gestão e planejamento da Prefeitura de Barcelona, estruturada nos anos de 1980, para gerir e planejar serviços urbanos como estacionamentos, zona azul, reboques etc. Já em 2006, o governo socialista então vitorioso na cidade, observou outros projetos de bicicletas públicas de sucesso (O programa Vélo’v de Lyon e os programas de Estocolmo e Oslo), solicitando à BSM a montagem de um projeto semelhante para Barcelona.
Ressalta-se que antes da implantação das bicicletas públicas em Barcelona, haviam cerca de 100 quilômetros de ciclovias, mas posteriormente à implantação do serviço foi se sedimentando a ideia de que uma vez operado um grande investimento público em bicicletas e estações, a expansão da infraestrutura ciclável deveria ocorrer mais intensamente. Em decorrência disso, atualmente Barcelona conta com mais de 200 quilômetros em ciclovias municipais/interurbanas e uma frota de mais de 6.000 bicicletas públicas, distribuídas em 420 estações totalmente automáticas, dotadas de interface em tempo real entre usuário e sistema.
Ora, aqui se observa a importância da presença do Estado neste tipo de iniciativa, mas no caso das bicicletas públicas essa importância faz-se ainda mais profunda, talvez mais até do que no próprio serviço de transporte público coletivo motorizado. O fato é que no caso do exemplo que estamos tratando, no primeiro ano de implantação do serviço, houve perdas estimadas em 2 milhões de Euros, em grande medida derivadas de roubo e depredação. Em um único ano, praticamente toda a frota de bicicletas públicas de Barcelona foi roubada. Segundo Raúl Aguilera (Direção técnica da BSM), vulnerabilidades nas estações e nas bicicletas facilitavam esses roubos, o que exigiu novos investimentos do Estado na infraestrutura, na ordem de 400.000,00 Euros (bicicletas com o dobro do peso e sistemas de anclagem mais robustos). Outro fato que se deve comentar é que após um período de expansão de usuários, se passou a observar que uma parcela importante dos usuários inscritos no sistema público de bicicletas não permanecia ao longo dos meses seguintes. De fato, no ano de 2002 contavam-se 120.000 inscritos e atualmente estes são cerca de 96.000, com uma taxa de abandono do sistema que é persistente.
Ora, tais fatos seriam um forte argumento para que os setores políticos conservadores e defensores do “Estado mínimo” pressionassem pela extinção do serviço de bicicletas. Mas ao investigar as razões do abandono, constatou-se que embora tenham deixado o sistema, estes usuários passam a adquirir suas próprias bicicletas. Na verdade, aprovaram a bicicleta enquanto modo de transporte.
Um dado que demonstra esse fato é que após sua implantação, o uso de bicicletas privadas na cidade triplicou, uma vez que em 2007 ocorriam cerca de 40.000 viagens/dia em bicicleta e em 2014, computaram-se cerca de 120.000 viagens/dia, sendo 50.000 destas, correspondem à bicicleta pública. Ou seja, modificaram-se e ampliaram-se certos padrões de mobilidade, beneficiando a cidade. Em outras palavras, o custo-benefício social do projeto – seu efeito positivo para a sociedade em geral – foi priorizado em relação à solvência isolada daquele ativo estatal. Trata-se de uma outra concepção da atuação do Estado, a qual obviamente exige maior capacidade do mesmo no que se refere a investimentos contínuos em determinados setores.
Finalmente, vale destacar que o sistema, do ponto de vista contábil é deficitário: A fatura a ser paga pelos custos do operador privado é de cerca de 16 milhões de Euros anuais, mas apenas 4 milhões de Euros provêm dos tickets dos 96.000 usuários. Dos 12 milhões restantes, 1 milhão provêm de Vodafone (um dos patrocinadores, em troca de publicidade) e 11 milhões – a maior parte dos recursos – quem paga é o Estado. Ora, diante do que temos assistido no Brasil pós-golpe, essa que seria uma possível agenda para avançar nas políticas voltadas à mobilidade não-motorizada, está distante dos objetivos governamentais. Consoante esses fatos, podemos afirmar aos jovens cicloativistas, que definitivamente as suas demandas e os movimentos de defesa do neoliberalismo – travestidos de supostos “movimentos pela liberdade e a democracia” – não combinam em absoluto...
Trouxemos aqui um exemplo dentro da temática da mobilidade urbana não-motorizada – desfazendo o mito de que não exigem maiores investimentos, nem a presença do Estado – mas muitos outros poderiam ser colocados. O atual governo golpista ameaça o avanço de políticas dessa natureza ao abrir mão de potenciais ativos naturalmente presentes no território nacional, como é o caso da revogação da preferência da Petrobras sobre as camadas Pré-Sal. Não obstante, quaisquer que sejam os exemplos de equipamentos coletivos, todos eles guardam uma relação com a capacidade da nação em pôr em marcha um projeto genuíno de desenvolvimento econômico.
As possibilidades de mudança, de remoção dos obstáculos às políticas de mobilidade efetivamente contundentes, também dependem da ação de intelectuais ligados ao problema, articulados a outras demandas sociais nacionais, bem como de uma vigilância constante dos grupos e coletivos sociais interessados. Infelizmente, os sectarismos, o caráter demasiadamente “difuso” das pautas de alguns desses movimentos e os posicionamentos que impedem uma ação estratégica sobre a realidade, fazem com que as duas rodas mobilizadas pela tração humana se avizinhem cada vez mais dos caminhos esburacados gerados pela falta de investimentos.
Rodrigo Giraldi Cocco
Doutor em Geografia
Universidade Federal de Santa Catarina