O CASO GALEÃO X SANTOS DUMMONT: O REFLEXO DAS ESTRATÉGIAS LOGÍSTICAS

13/04/2023 16:50
Por: Me. Lucas Azeredo Rodrigues (Doutorando-UFSC)
Publicado em: 13/04/2023

A problemática sobre a ociosidade do Aeroporto Internacional Tom Jobim (Galeão) e a sobrecarga do Aeroporto Santos Dummont é resultante de uma série de combinações. Ela é reflexo da adoção de diferentes estratégias logísticas do Estado e do setor corporativo. Além disso, a estrutura econômica e social do Rio de Janeiro também deve ser levada em consideração.

A movimentação de passageiros na capital fluminense passou por um período crescente, sendo que a partir de 2016, começou a ter uma pequena queda. O Santos Dummont, por ser um aeroporto centralizado na capital, era mais utilizado para voos de ponte aérea, ou mais regionais, de curta duração, pois, devido a sua capacidade de operação, não consegue receber aeronaves maiores. Já o Galeão, foi por muito tempo um importante hub nacional e internacional. No entanto, as empresas aéreas começaram a reduzir os voos e concentrá-los na macrometrópole paulista (Campinas, São Paulo e Guarulhos).

No período antes da Pandemia, em 2019, o Santos Dummont recebeu 8,9 milhões, e em 2022, 9,9 milhões. Já o Galeão, saiu de 13,6 milhões para 5,7 milhões no mesmo período. Isso não significa que os passageiros foram transferidos de um aeroporto para o outro, mas sim, que a capital perdeu quase 7 milhões de passageiros.

A própria estrutura do Galeão, sobretudo após a construção do Píer 3 (embarque internacional) coloca o aeroporto numa situação privilegiada no que diz respeito ao sítio aeroportuário, pois, além de seus três terminais, também possui duas pistas que podem ser operadas praticamente de forma simultânea. Ao contrário, o Santos Dummont apresenta diversas limitações, sejam elas de espaço, aeronave crítica ou até mesmo horário de funcionamento.

A capacidade do Galeão é de 37 milhões de passageiros por ano, e do Santos Dummont é de 15,3 milhões. Sobrecarregar os aeroportos reflete, sobretudo na falta de comodidade para o usuário e até mesmo em atrasos. Dados do Flightradar24 apontam que entre 12/04 e 19/04, o Santos Dummont tem previstas 1.179 decolagens para 18 aeroportos, e o Galeão, 386 para 15. De um lado, um aeroporto com 20 posições para estacionamento de aeronaves comerciais, e de outro, 149.

Ora, se tem estrutura, quais questões causariam a queda do Galeão?

A questão da acessibilidade é um ponto. O aeroporto internacional fica localizado na Ilha do Governador, numa região mais afastada do centro. Para chegar no Galeão, tem a opção de Táxi, Aplicativo, Veículo próprio e Ônibus. Este último apresenta algumas variações: o BRT, que liga até o Terminal Alvorada na Barra da Tijuca e passa pelo subúrbio do Rio de Janeiro (é válido destacar o sucateamento desse serviço, que está sendo revitalizado pela prefeitura); executivo, que liga também à Barra, Zona Sul e Rodoviária; o Rodoviário liga às principais cidades da Região dos Lagos; e o coletivo Normal, limitado a alguns bairros adjacentes.

Já o Santos Dummont, além de estar no centro da capital, o que facilita o acesso e barateia a utilização de táxis e aplicativos, conta com a atuação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). É importante mencioná-lo, pois, além de passar pelo “Coração do Rio de Janeiro”, ele faz integração com todos os modais de transporte da capital, desde as barcas, trens, metrôs, aos terminais de ônibus urbanos, como a Central, ou dos executivos, como o Menezes Cortes.

Entrelinhas, para os usuários do transporte público, chegar no Santos Dummont é mais fácil. Ademais, o Galeão ainda está próximo das principais cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o que inclusive, configura como um elemento instigador de demanda, no entanto, acessá-lo por transporte coletivo é extremamente complexo, a não ser que seja por veículo particular.

Uma outra questão que afasta pessoas do Rio de Janeiro, é a insegurança.  Os  dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) apontam que  Região Integrada de Segurança Pública onde estão inseridos os dois aeroportos: é a área que mais tem roubo de rua no estado, com 21,7 mil casos em 2022 (aumento de 11,8% comparado a 2021); Roubo de veículos, aumentou 36,1%, contabilizando 6 mil casos em 2022.

A questão das concessões dos aeroportos também é um ponto. Recentemente, veio à tona a possibilidade da administradora do Galeão, a Changi, de Singapura, em desistir da concessão. É válido destacar que a brasileira Odebrecht também possuía uma fatia de porcentagem. Juntas, somavam 51% do controle do aeroporto, e os outros 49% da INFRAERO. Com a deflagração da Lava-jato, a Odebrecht renunciou à participação. Recentemente, no Governo Bolsonaro, havia a possibilidade de também conceder o Santos Dummont à iniciativa privada, em conjunto com o Aeroporto de São Paulo (Congonhas), no entanto, a ação foi postergada, cogitando a possibilidade de conceder os dois aeroportos da capital, o que facilitaria atuações conjuntas. A questão tarifária também não é um problema. As taxas do Galeão são menores, exceto a de conexão, que é R$ 0,53 mais cara.

As estratégias logísticas pelas companhias aéreas também é um diferencial. O Galeão por muito tempo, foi um hub internacional, o que ampliava a demanda de conexões com voos domésticos e vice-versa. Aos poucos, as empresas centralizaram suas operações em Guarulhos e por outros hubs mais regionalizados, como Salvador, Recife, Brasília e Belo Horizonte. Utilizar um aeroporto como hub envolve muitos fatores, desde a questão de infraestrutura até a acessibilidade. Geralmente, esses aeroportos centro de operações estão localizados em pontos estratégicos ou até mesmo onde há redução de impostos, como o caso de Campinas e Confins. A redução de um grande volume de custo impõe uma maior competitividade, haja vista que reduz o preço da tarifa. Isto é, a carga tributária do Rio de Janeiro, tanto do município, quanto unidade federativa, é um fator que também afasta as empresas.

Em 2008 a Azul cogitou de fazer o Rio de Janeiro em um hub, no entanto, seria o Santos Dummont. No entanto, isso foi recusado pelo Estado, exatamente por “retirar” passageiros do Galeão. Inclusive, isso foi alvo de ações judiciais. De um lado, a Azul alegava que operar no Galeão era inviável, já que as outras companhias atuavam fortemente lá, e de outro, o Estado a favor de seus interesses, pois, o Galeão estava entrando em processo de concessão, e isso diminuiria o valor do leilão. Nesse cenário, o Santos Dummont estava limitado a aeronaves de 50 passageiros e voos da ponte aérea, o que não era plano, até então, da Azul. O resultado foi: a Azul adotou o aeroporto de Campinas. Apenas em fevereiro de 2023, a Azul teve quase 9 mil pousos e decolagens em Viracopos, distribuídos entre um pouco mais de 60 destinos. A maioria desses voos poderiam ser operados no Galeão, sob sistema de hub.

Ou seja, o próprio Estado inibiu a criação de novas interações. É importante citar que não se trata apenas de um voo. Existe toda uma cadeia produtiva por trás das operações aéreas, das quais constituem uma parcela significativa das hinterlândias aeroportuárias. Desde as locadoras, hotéis, até as tripulações e equipes de solo. É um efeito multiplicador gigantesco, além de incentivar o turismo e outras atividades econômicas.

Neste cenário de desequilíbrio, quais são as alternativas?

O primeiro passo é o diálogo entre a logística de Estado (considerando as três esferas) e a logística corporativa (empresas e companhias aéreas). Diversos impasses podem ser resolvidos ou amenizados.

A limitação operacional do Santos Dummont aparece como uma alternativa imediata, mas não definitiva. Uma situação é operar nesse aeroporto como destino, outra é fazê-lo de hub. Um exemplo, em 2007 a ANAC limitou as operações no Aeroporto da Pampulha (voos mais regionais e com aeronaves de até 50 passageiros), forçando a mudança dos voos para Confins. O problema daquela época para hoje se manteve: poucas empresas aéreas tinham uma frota que pudesse operar dentro das restrições, e aos poucos, o aeroporto foi se tornando subutilizado para aviação comercial.

Não é o caso de se fazer com o Santos Dummont, pois, pode ser utilizado efetivamente como ponto de embarque e desembarque, e o Galeão, como um ponto de conexão. Para isso, as rotas a partir do Santos Dummont seriam basicamente a ponte aérea (RJ-SP) e voos diretos para os principais destinos do país que possuem forte ligações com o Rio de Janeiro, como Salvador, Porto Alegre e Brasília.

No entanto, para que o Galeão possa ser um hub novamente, o número de voos precisa ser ampliado. Mas como?

A utilização de subsídios ficais, como a redução de impostos, seja zerar, ou colocar de forma escalonada, é uma situação que pode atrair novos voos. A primeiro momento, pode se ter a impressão de que o Estado teria prejuízo, no entanto, a partir das atividades desencadeadas a partir das operações aéreas, compensam, ou até aumentam, a arrecadação (vide o exemplo do efeito multiplicador), haja vista que teria um aumento da geração de renda e emprego pela região.

O Rio de Janeiro é a cidade turística do Brasil mais conhecida pelo exterior. Logo, a atratividade por novas atividades relacionadas a lazer pode novamente atrair mais voos internacionais de forma direta, sem precisar de conexão. Fatores que favorecem a economia regional.

Melhorar a acessibilidade ao aeroporto também é uma situação importante. Ter opções de linhas que saem de outros municípios da baixada fluminense (e aqui, podemos incluir a criação de um pequeno terminal rodoviário no aeroporto) também é um ponto interessante. Ficar refém de poucas opções de transporte é algo que inibe o passageiro.

E o Santos Dummont? A limitação de operação de aeronaves de maior porte, e o horário, o torna especial, assim como Congonhas em São Paulo. Estabelecer um teto de voos por companhia aérea, somada à uma política de constituição de um hub no Galeão, é fundamental. A oferta de destinos também é algo que deve ser considerado, haja vista que altera as estratégias logísticas das empresas aéreas. Se for o caso, até mesmo um transfer entre os dois aeroportos poderia também atuar de forma complementar.

Alternativas não faltam. O grande ponto é destrinchar e alinhar os interesses estatais e corporativos por trás das operações entre o Galeão e o Santos Dummont. Quem ganha com isso é o usuário, sobretudo, a população carioca e fluminense.

Autor:

Lucas Azeredo Rodrigues
Mestre e Doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGG/UFSC)
Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística (LabCit-UFSC)
Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional  e Infraestrutura (GEDRI-CNPq)
Núcleo de Estudos Sobre Transporte (NETRANS-UNILA)
Grupo de Estudos sobre Transportes Urbano-Regional (GETUR)

A modernização do transporte ferroviário de Cuba

31/12/2021 13:00

Por: Profº Dr. Nelson Fernandes Felipe Jr (UNILA)

 

Em 1837, Cuba foi o sétimo país do mundo e o primeiro da América Latina e Caribe a possuir o transporte ferroviário. Todavia, nos últimos trinta anos, houve uma precarização do serviço, principalmente porque desde a década de 1970 Cuba não recebia mais trens e locomotivas para operarem no sistema. A União Soviética enviou, nos anos de 1960 e 1970, algumas composições novas e, sobretudo, trens usados para serem utilizados no país caribenho. As ferrovias cubanas, desde os anos de 1990, são prejudicadas pela falta de manutenção e escassez de equipamentos modernos, como resultado da dissolução da União Soviética, da dificuldade de estabelecimento de novas parcerias tecnológicas e do embargo econômico/comercial dos Estados Unidos (SPUTNIK; vermelho, 2019).

Para mudar esse cenário, o governo cubano criou o Programa de Recuperação e Desenvolvimento do Meio de Transporte Ferroviário, que se estenderá até 2028. Como consequência desse projeto, a Russian Railways – empresa que controla as estradas de ferro na Rússia – firmou um contrato de US$ 1,98 bilhão com a União de Ferrovias de Cuba. A estatal russa será responsável por promover a ampliação e modernização da infraestrutura ferroviária no território cubano, com o objetivo de incrementar a circulação de passageiros e produtos e fomentar o desenvolvimento econômico. O projeto e o contrato firmado entre os países estabelecem que pouco mais de mil quilômetros de ferrovias serão modernizadas, além da criação de um centro de controle para gerenciar o tráfego ferroviário (SPUTNIK; vermelho, 2019).

Essas melhorias permitirão aumentar a segurança no transporte, elevar a velocidade, ampliar a abrangência espacial da rede ferroviária e otimizar o funcionamento do sistema (fluxos, horários, identificação e redução de erros de operação etc.). Outrossim, em 2019 e 2020, Cuba recebeu 160 novos vagões fabricados na China que estão em circulação para atender a demanda por transporte no país, especialmente na capital Havana, e essa frota será ampliada nos próximos anos (ALEKSÁNDROVA, 2019, 2020).

A aquisição dos novos vagões e locomotivas foi/é resultado de uma parceria com a China, assim, esse acordo prevê que o país asiático deverá produzi-los e também fornecer empréstimos para Cuba poder compra-los. A modernização e a operação das novas composições ferroviárias permitem aumentar a velocidade e diminuir o tempo das viagens. Cada trem possui capacidade para transportar 766 passageiros e existem diversas linhas que interligam cidades importantes, como Havana, Matanzas, Santiago de Cuba, Holguín e outras (SPUTNIK; vermelho, 2019).

Em 2018, o sistema ferroviário de Cuba transportou 6,1 milhões de passageiros e, a partir desse projeto, das parcerias com a Rússia e a China e os investimentos que serão realizados nos próximos anos, o governo cubano prevê que todas as obras estejam finalizadas até 2030. Além disso, há possibilidade de construção de uma linha ferroviária para circulação de trens de alta velocidade, conectando Havana ao balneário de Varadero (ALEKSÁNDROVA, 2019).

Os países da América Latina e Caribe apresentam pontos de estrangulamento nas infraestruturas e precisam avançar no processo de integração territorial, diante disso, é importante fomentar especialmente o modal ferroviário e a multimodalidade/intermodalidade. Em relação aos grandes projetos de infraestruturas na atualidade, destaca-se a Iniciativa Cinturão e Rota (também denominada de Nova Rota da Seda), em que o governo da China pretende investir mais de US$ 1 trilhão em infraestruturas na Ásia, Europa, Oriente Médio e África. O plano chinês iniciou-se em 2013 visando criar novas oportunidades de investimentos, impulsionar o comércio e o crescimento econômico, aumentar a fluidez e as redes intermodais, entre outros.

A China se destaca na expansão dos fixos no seu território e também em outros países. O desenvolvimento econômico chinês é resultado de vários fatores, como o planejamento estatal, os vultosos investimentos em infraestruturas econômicas e sociais (grandes projetos e obras, notadamente a expansão/modernização dos equipamentos e serviços de utilidade pública), o fomento da indústria, a agregação de valor e tecnologia na produção, a valorização da C&T, as empresas estatais estratégicas, os financiamentos e subsídios, entre outros.

A intensificação da inserção chinesa no comércio, nas parcerias e nos investimentos internacionais, bem como as mudanças na lógica produtiva e exportadora, são relevantes para compreender o dinamismo do país asiático. Ademais, a China vem ampliando as inversões e os acordos comerciais com os países periféricos, principalmente com nações da África e da América Latina e Caribe (caso da modernização do sistema ferroviário de Cuba). Assim, a China assegura o acesso às matérias-primas (importantes para a produção industrial), aumenta as possibilidades de investimentos das empresas estatais e privadas chinesas (energia, construção civil pesada, indústrias de média e alta tecnologia, mercado de ações etc.) e garante mercados consumidores para suas mercadorias, sobretudo manufaturas, têxteis, eletroeletrônicos, informática e bens de capital (JABBOUR, 2010).

Considerando o ambiente internacional de exacerbada competição, cujos efeitos se desdobram rapidamente na América Latina e Caribe, é necessário os países avançarem na integração territorial e nas parcerias estratégicas, valorizando a expansão das infraestruturas, a cooperação política, econômica, financeira e tecnológica, o incremento do comércio, a defesa dos interesses comuns das nações, entre outros. Entretanto, isso somente é possível com a existência de condições políticas favoráveis (o que não existe no Brasil desde 2016) e com o estabelecimento de uma política macroeconômica desenvolvimentista, com destaque à expansão/modernização dos equipamentos e serviços de utilidade pública (transportes, energia, telecomunicações, saúde, educação, saneamento básico, internet etc.). Exemplos nesse sentido são verificados atualmente na África (Etiópia), na América Latina e Caribe (Cuba) e na Ásia (Vietnã, China, Coreia do Sul, Cingapura etc.). Ao mesmo tempo que alguns países estabelecem projetos e programas de desenvolvimento, o Brasil afunda na crise política, econômica e social. Esperamos um futuro melhor!

Referências

ALEKSÁNDROVA, M. Cuba receberá US$ 2 bilhões da Rússia para suas redes ferroviárias. 2019. Disponível em: https://br.rbth.com/economia/82937-russia-dara-2-bilhoes-ferrovias-cuba. Acesso em: 17/08/2021.

JABBOUR, E. Projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado na China de hoje. Tese de Doutorado em Geografia. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 2010.

SPUTNIK. Cuba inaugura novo sistema ferroviário em parceria com Rússia e China. 2019. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/sociedade/59478/cuba-inaugura-novo-sistema-ferroviario-em-parceria-com-russia-e-china. Acesso em: 16/08/2021.

VERMELHO. Com a ajuda de China e Rússia, Cuba inaugura sistema ferroviário. 2019. Disponível em: https://vermelho.org.br/2019/07/14/com-a-ajuda-de-china-e-russia-cuba-inaugura-sistema-ferroviario/. Acesso em: 18/08/2021.

Autor

Prof. Dr. Nelson Fernandes Felipe Junior

Docente do curso de Geografia

UNILA/PPGICAL

Tags: CubaDesenvolvimento econômicoInfraestruturasTransporte ferroviário

Mobilizar ou imobilizar? A pandemia da Covid-19 e a incompreensão do que é o desenvolvimento

29/03/2020 13:00

No Brasil de Bolsonaro e Guedes, assim como de seu antecessor Michel Temer, o sucateamento dos meios de reprodução da força de trabalho – dentre os quais a saúde pública – foram a tônica dos 4 anos que se seguiram ao Golpe de Estado em 2016. A agenda de austeridade neoliberal realizada por esses governos impôs um teto de gastos à saúde pública (EC/95), que só em 2019 retirou R$ 20 bilhões do setor, negligenciando o caráter estratégico do SUS. Mesmo em meio à atual crise de saúde pública gerada pela pandemia do coronavírus, o presidente-vassalo do imperialismo tem negado seguidamente a necessidade de isolamento domiciliar por parte dos brasileiros, criando uma falsa dicotomia entre o desenvolvimento econômico e o resguardo das vidas humanas, exortando a população ao retorno de todas as atividades, incluindo escolas, comércio e serviços em geral. A pergunta que fazemos é: de fato existe a dicotomia entre desenvolvimento econômico e o resguardo da saúde através do isolamento social, combinado a outras medidas?

 

Nos últimos dias a Rússia iniciou obras para um complexo hospitalar de 80 mil metros quadrados em Moscou, com 500 leitos, sendo 250 UTIs e um laboratório próprio de infectologia para a análise das infecções, mobilizando 5.000 trabalhadores (Fonte: Sputnik, 2020). Ao mesmo tempo, a prefeitura moscovita decretou o isolamento domiciliar e o fechamento de comércio e serviços não-essenciais, para desacelerar a disseminação do vírus. Trata-se de ações similares às que tomaram as autoridades chinesas dias atrás. Na China, empresas privadas e estatais foram mobilizadas para a produção massiva e com preços controlados, de itens como respiradores, testes para Covid-19, máscaras, luvas e desinfectantes, além de 2 grandes hospitais, um deles com 1.000 leitos, em apenas 10 dias.

 

Canteiro de obras do complexo hospitalar de infectologia no distrito Troitsky-Novomoskovsky de Moscou. Fonte: Sputnik.

É obvio que há perdas econômicas imediatas com a redução da circulação e do consumo. Mas o exemplo chinês, assim como o russo, nos mostra que não há uma dicotomia absoluta, desde que o Estado entre em ação. Inovações surgem nas crises, são novos problemas cujas soluções se realizam através de novas químicas finas, engenharias de materiais, softwares, robótica etc.

 

Se por um lado é fundamental que se cessem as mobilidades em geral momentaneamente e assim, interações espaciais – ou seja, os contatos interpessoais que geram transformações progressistas naqueles que estão nela envolvidos (que geram, portanto, desenvolvimento) –, por outro lado, outras formas de interações espaciais e mobilidades são necessárias para combater o Covid-19, bem como para já preparar estrategicamente os países para outras possíveis epidemias/pandemias. Assim, a circulação massiva de pessoas, que potencialmente amplia a transmissão da doença (transportes de massa, circulação em praças de comércio e serviços, shoppings, escolas, universidades e outras aglomerações), dá lugar a mobilidades específicas para o combate à doença. Ações combinadas desse tipo têm sido essenciais para a saída mais rápida da crise, por alguns países. Inclusive, as 184 estações do metrô de Wuhan estão sendo gradativamente reabertas, equipadas com scanners térmicos para avaliar a temperatura dos passageiros, mostrando que a resposta está na aplicação de ciência e tecnologia.

 

Fato é que a mobilidade nunca cessa completamente. A máxima do “caráter absoluto do movimento e do caráter relativo do repouso”, na dialética materialista, é plausível. Além disso, mobilidades essenciais para o tratamento dos doentes, para a geração de conhecimentos, P&D, tecnologia e infraestrutura para se vencer o Covid-19 devem ser protegidas com todas as tecnologias de segurança disponíveis, inclusive com a prioridade dos testes de Covid-19 e o acompanhamento diário de seus trabalhadores. A massa da população, no entanto, deve ser protegida pelo isolamento e um programa de renda mínima adequado, até que haja um correto mapeamento dos focos da doença no território e assim, o controle do problema. Mas nada disso tem sido feito pelo governo brasileiro.

 

O governo Bolsonaro, acompanhado de governos estaduais e municipais, não faz desses exemplos a sua lição de casa. Os testes para constatação do Covid-19 – uma ferramenta fundamental para o isolamento e acompanhamento dos casos, tal como nos mostrou a Coréia do Sul, são insuficientes em quantidade. Faltam máscaras, material de limpeza, luvas, respiradores e leitos públicos de UTI em todo o território nacional. Não bastassem essas carências, o próprio presidente exorta as pessoas a retornarem totalmente às suas atividades.

 

É importante lembrar que o Brasil possui um déficit crescente na balança comercial ligado à saúde pública que vem acompanhando o período de 20 anos na esteira da construção do SUS. O déficit salta do patamar de US$ 3,0 bilhões em 1996, para US$ 12 bilhões em 2016 (GADELHA, 2018), mostrando, por um lado, como os governos populares de Lula da Silva e Dilma Rousseff esforçaram-se por ampliar e equipar o sistema, mas por outro, demonstra a sua fragilidade tecnológica. A próxima etapa seria justamente a de internalizar tecnologias para a produção própria de equipamentos médicos (joint-ventures, engenharia reversa etc.), com o fim de criar certa independência estratégica nesse setor. Vale ressaltar que nesse momento, pelo menos 50 países do mundo estão restringindo exportações de produtos avançados de saúde, obviamente dando preferência para o atendimento de suas necessidades internas. Os bolsonaristas/neoliberais ignoram completamente esse problema.

 

Além disso, que dizer de nossas cidades e seus sistemas de transporte e mobilidade? No Brasil, as pessoas permanecem muito tempo dentro do sistema de transporte, ou seja, muito tempo em trânsito, o que faz delas alvos potenciais de acidentes, stress, cansaço físico além do normal, condições nas quais pode haver redução de imunidade contra doenças, além é claro, de maiores chances de uma contaminação direta, já que estão expostas a uma grande variação no sobe-desce de passageiros. Na Região Metropolitana de Florianópolis, deslocamentos entre a cidade de São José, no continente e a Ilha de Santa Catarina, em condições de congestionamento, podem gerar até 4 horas de permanência dentro do sistema de transporte público (ida e volta), tal como ocorreu há dias atrás. Como pode, o governador de Santa Catarina, exortar as pessoas ao retorno de suas atividades, espremidas umas contra as outras no interior de um ônibus várias horas por dia?

 

Ademais, trata-se de um transporte público não subsidiado e, portanto, economicamente frágil em contextos como o atual. Além disso, não há institucionalidades, um “pessoal de inteligência” ligado à mobilidade, capaz de criar, flexibilizar e adaptar os serviços de transporte público a contextos de crise. Que dizer das pessoas que tem que deslocar grandes distâncias, em deslocamentos pendulares para efetuar suas compras em um contexto de quarentena? Toda a política de transportes e mobilidade que não foi feita anteriormente hoje mostra seus efeitos.

 

Ônibus lotado na Grande Florianópolis. Fonte: Ndmais.com.br.

Ora, ao contrário do que dizem as “falanges terraplanistas” não são as “altas densidades das cidades europeias” o grande propagador do vírus. Falam como se o Brasil estivesse protegido por sua dispersão urbana! Se assim fosse, Japão, Cingapura e Coréia do Sul, com suas hiperdensidades, já contariam centenas de milhares de infectados. Não se trata de uma análise de causa e efeito entre densidades urbanas e propagação do vírus. Se assim fosse, a cidade sul-coreana de Seul, com 16.257 hab./km² estaria mais infectada do que a estadunidense Nova Iorque com seus 7.166 hab./km². A ação do Estado sim, é decisiva.

 

Por fim, uma última palavra sobre as negligencias históricas de nossa sociedade. Em sociedades intensivas em conhecimento e tecnologia, o fator humano é um bem inestimável. Já nos dizia o grande Ignácio Rangel, que “um único dia perdido da força de trabalho, não pode ser recuperado” (RANGEL, 2005). Não deve haver, portanto, dicotomia entre desenvolvimento e proteção da vida humana. Ao contrário do que dizem os “novos malthusianos”, a proteção da vida está incluída na categoria de desenvolvimento. Contudo, somente sociedades planejadoras, que se organizam para o longo prazo, sabem da importância do fator humano para o seu desenvolvimento. Afinal, vidas perdidas são histórias que se vão, juntamente com valores-trabalho, inovação, idéias, além da própria vida, que não tem preço.

 

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RANGEL, Ignácio. Obras Reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

GADELHA, C.A.G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Revista Ciência e Saúde Coletiva, n. 23, 2018.

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Rodrigo Giraldi Cocco

Doutor em Geografia (UFSC)

Pós-Doutor pela Universidade de Guadalajara e pela UFSC

Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística (LABCIT-UFSC)

Núcleo de Estudos sobre Transportes (NETRANS-UNILA)

Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regionais e Infraestruturas (GEDRI-CNPq)

Tags: AcessibilidadeBrasilCOVID-19DesenvolvimentoMobilidadeTransporte Público

Os impasses do planejamento da mobilidade na Região Metropolitana de Florianópolis (RMF)

07/11/2019 13:00

Passados cinco anos da realização do estudo do Plano de Mobilidade Urbana da Região Metropolitana de Florianópolis (PLAMUS) de 2014, sob encomenda do estado de Santa Catarina, observa-se que poucas soluções foram colocadas em marcha no sentido de solucionar os problemas de mobilidade na região. Os estudos de origem-destino; sobe-e-desce; contagem de tráfego; frequência e ocupação visual, e outros, foram reveladores do quadro de deterioração geral das condições de mobilidade, mas sua operacionalização na forma de políticas públicas tem esbarrado em contradições que envolvem o próprio Estado e os blocos de poder nele entronizados. Assim, os projetos e as capacidades institucionais de realizá-los, tem incorrido em visíveis retrocessos.

 

O plano concebido no ano de 2015, de integrar a Região Metropolitana de Florianópolis através de um sistema BRT (Bus Rapid Transit) foi substituído recentemente por uma proposta de integração ainda mais conservadora que o próprio BRT. Enquanto isso, infraestruturas pontualmente construídas no decorrer do último quadriênio, como por exemplo, a duplicação da SC-403 efetuada em 2017, não tem surtido o efeito desejado. O fato é que apesar das ampliações viárias, a inexistência de corredores exclusivos para transporte público (Figura 1) tem piorado significativamente as condições de mobilidade. Ademais, a construção de novos empreendimentos nas extremidades dos bairros – sem a devida qualificação urbanística, tais como Comprefort e Havan, no Norte da Ilha –, bem como em eixos usados para deslocamento pendulares, como os empreendimentos da “Rota da Inovação”, na rodovia SC-401, tem aumentado o volume de automóveis em espaços não qualificados para tal.

Figura 1 – Congestionamento na rodovia SC-401 após duplicação e sua afetação sobre os transportes públicos, em 2018.

Fonte: https://ndmais.com.br/noticias/buraco-na-sc-401-provoca-mais-de-oito-quilometros-de-congestionamento-em-

Ao mesmo tempo, os sistemas de transporte público da região têm exibido uma persistente deterioração em suas taxas de renovação de passageiros e condições de execução de sua logística corporativa, entre outros problemas decorrentes da dispersão urbana regional combinada à inação do Estado. Exemplo disso é a utilização de veículos intermediários aos ônibus articulados – os ônibus “15 metros” –, nos horários de entre-picos, visando a reduzir custos operacionais crescentes. Assim, a ausência de um planejamento público que integre serviços de transportes, uso do solo e infraestruturas, dá lugar a estratégias e tecnologias voltadas à logística corporativa, que não se revertem em melhoras nas más condições de mobilidade – ou, quando muito, amenizam muito timidamente essas más condições –, para o usuário.

 

Nesse contexto, considerando a ineficácia das instituições públicas de planejamento da mobilidade metropolitana na região, cabe questionar: quais são os principais aspectos condicionantes dessa ineficácia? O primeiro fato a ser destacado remete ao aprofundamento histórico do neoliberalismo no planejamento, consubstanciado na vitória ideológica dos “neo-localismos competitivos”, provenientes da ausência de um pacto federativo que consubstancie objetivos de planejamento e desenvolvimento nacional/regional (VAINER, 2007). Assim, como expõe Rangel (2005), a atividade de planejamento não se pode fazer em quaisquer condições, mas apenas em sociedades estáveis, conscientes de sua unidade e socialmente coesas. Nesse caso, as dualidades que historicamente compõem a sociedade e o Estado no Brasil teriam que desaparecer, dando lugar a uma maior homogeneização da sociedade, mas isso não ocorreu (RANGEL, 2005).

 

Nessa lógica, ao mesmo tempo em que historicamente se delegaram poderes e responsabilidades aos estados e municípios, não houve uma promoção da cooperação entre eles e tampouco houve garantia de recursos contínuos a esses entes. Assim, instituições desconcentradas – ou “devolvidas” (MACKINNON et al, 2010), como expressa a literatura internacional –, ao contrário dos casos europeus, no caso brasileiro foram, na verdade, esvaziadas de suas capacidades reais de planejar. É o que temos visto no caso catarinense.

 

Nesse processo, antigos órgãos de planejamento catarinenses, cujas competências e capacidades eram promissoras no sentido de solucionar e encaminhar questões candentes do território, foram sendo extintos ou substituídos por Secretarias de Estado, com grande volume de cargos comissionados e poucos técnicos de carreira. O Instituto Técnico de Economia e Planejamento - ITEP (1979), o Gabinete de Planejamento - GAPLAN (1983), entre outras, foram iniciativas contundentes que atuaram como vetores de execução de projetos, além de acumularem dados significativos sobre o território, com fins de planejamento. Estas foram extintas no decorrer de mudanças de governo.

 

O GAPLAN, por exemplo, criando durante o governo Jorge Bornhausen, 1979-1982, surge de uma estrutura de perfil técnico, proveniente de outra instituição igualmente operativa: o Instituto Técnico de Estatística e Planejamento (ITEP), que data do Governo Antônio Carlos Konder Reis, 1975-1979. O GAPLAN possuía subchefias especializadas e setorizadas, para a elaboração de trabalhos de geografia, cartografia, identificação e demarcação de limites territoriais intermunicipais e distritais, bem como para a realização de estudos de geografia regional. Ademais, dava suporte específico ao planejamento nos municípios e questões ligadas ao meio ambiente (dando origem à FATMA). Durante a devastação do estado pelas enchentes de 1983, foi o PROURB, de iniciativa do GAPLAN, que recuperou 70% das estradas destruídas.

 

O fato é que no período posterior à redemocratização, observou-se no Brasil e também em Santa Catarina, um processo de desmontagem das instituições de planejamento mais ativas. O GAPLAN, por exemplo, foi extinto pelo então governador Vilson Pedro Kleinübing (1991-1994), que redirecionou parte de seus técnicos à Secretaria do Planejamento e Fazenda. Ao mesmo tempo, foram efetuadas “devoluções” de competências aos municípios, que – salvo algumas exceções– não significaram um aumento da capacidade de planejar. As novas atribuições incorporadas pelos municípios, seguidas de uma capacidade de investimento declinante, só sucateou ainda mais as instituições pré-existentes.

 

A história do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), criado em 1977, exemplifica bem esses problemas. O IPUF não se converteu em uma “rótula de concertação” com atuações metropolitanas, nem tampouco avançou em termos de capacidades técnicas de execução, muito embora a lei de criação do instituto já previsse a extensão de suas atribuições de planejamento ao conjunto da Grande Florianópolis.

 

O fato contundente é que apesar de surgir como uma iniciativa promissora, o órgão foi sendo sufocado. Nota-se que a autarquia estagnou em termos de pessoal, sendo que praticamente os mesmos técnicos contratados na década de 1970 prosseguiram na instituição. Muitos deles aposentaram e não houve substituição, o que era observável pela grande presença de estagiários e poucos técnicos de carreira. Entre os anos de 2005-2012 – dando continuidade a em um processo de desmonte que se iniciou anteriormente a ele – houve um enfraquecimento do órgão. No período, a autarquia já não conseguia fazer avançar nenhum processo licitatório, bem como houve retirada de atribuições, direcionadas novamente a uma secretaria: a Secretaria de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Urbano de Florianópolis. Assim, além de uma desmontagem efetuada na esteira do avanço neoliberal, observa-se um certo sentido estratégico de controle do Estado, por parte das elites regionais: retiram-se atribuições das mãos de técnicos de carreira e planejadores, colocando essas atribuições em mãos de cargos comissionados em secretarias, como forma de atender a barganhas políticas.

 

As descontinuidades que penalizaram o IPUF se refletiram na própria estruturação do Sistema Integrado de Transportes de Florianópolis (SIT), como resultado de conflitos políticos entre os grupos de poder regionais e da ausência de uma autarquia metropolitana pré-existente. O SIT, desde sua concepção, já expressava as dificuldades de integração de trabalho metropolitana. Inicialmente, o sistema inspirou-se na RIT (Rede Integrada de Transportes) da Região Metropolitana de Curitiba, sem, no entanto, estruturar-se dentro de uma institucionalidade metropolitana. O SIT, concebido durante a administração da prefeita Ângela Amin (1997-2005) – antecessora de Dário Berger –, não avançou no sentido de um sistema metropolitano por um conjunto de problemas estruturais que advieram. O primeiro que pode ser citado é a descontinuidade política e institucional. Assim, podemos elencar como fatores: a ausência de uma personalidade jurídica que integrasse de fato a região; a falta de recursos para desapropriação e construção de terminais em locais adequados; recursos para a manutenção contínua da atividade de planejamento e; falta de integração de trabalho entre as prefeituras da região e o estado.

 

Atualmente, a instituição incumbida da tarefa de planejar a mobilidade urbana regional é a Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Florianópolis (Suderf). A lei estadual 636 de 2014, que instituiu a Suderf, expressa seu objetivo de gerir o serviço de interesse comum da Região Metropolitana de Florianópolis, mediante a celebração de convênios com os municípios.

 

O fato contundente é que a Suderf convocou os prefeitos à assinatura do convênio em um momento no qual apenas se realizava a primeira reunião do Coderf (Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Florianópolis), do qual faz parte o Colégio de Prefeitos. Mas o ponto nevrálgico do debate, que desacelerou o processo, foi a proposta do estado de adquirir competências – normalmente municipais – de arrecadação mediante cobrança de multas e estacionamento, fato que, aliado à incerteza no horizonte dos investimentos estaduais e federais gerou reações negativas por parte das prefeituras em relação às ações do governo. O fato é que os municípios esperavam investimentos em novos terminais de integração e em corredores exclusivos.

 

No final de 2018, o então governador em exercício Eduardo Pinho Moreira (abril a dezembro de 2018) – que substituiu Raimundo Colombo, que deixou o governo para disputar as eleições – retirou o projeto de lei do convenio interfederativo da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, bloqueando um processo que havia avançado significativamente. A próxima etapa já seria a da licitação do sistema, bem como a promoção de uma Parceria Público Privada para viabilizar os novos terminais de integração – 2 novos terminais na área continental –, assim que o convenio passasse pelas câmaras municipais. Assim, houve uma desaceleração no momento em que os necessários ajustes interinstitucionais já haviam avançado, isto é, o momento mais oportuno para o aprofundamento do processo. Finalmente, no Governo Carlos Moisés da Silva, (2018-atual), tem havido uma perda de centralidade da questão metropolitana, com todos os processos ocorrendo sem grande ação deliberada das partes interessadas. Inclusive, a Suderf, que estava entre as autarquias que seriam extintas pelo governo, só não foi totalmente desmontada devido a ações de convencimento de parte da sociedade civil e de técnicos de carreira que contribuíram, desde o início, para a sua construção.

 

O CONSERVADORISMO DOS NOVOS PROJETOS PARA A MOBILIDADE URBANA REGIONAL

 

Quando se fala em conservadorismo no planejamento da mobilidade, um dos primeiros aspectos que devem ser considerados é a falta de diretrizes e capacidades, no planejamento, para a integração entre uso do solo e transportes; a geração de emprego e renda em espaços periféricos; o estimulo aos usos mistos do solo e; a implantação de novas tecnologias e infraestruturas mistas de transporte. Tais temas têm sido debatidos, nos últimos anos, como sendo objetivos importantes que deveriam ser almejados na Região Metropolitana de Florianópolis. Dentre esses temas, considerando as dificuldades políticas de se manejar a questão da terra urbana na região, acabou por destacar-se o objetivo de implantação de um Bus Rapid Transit na região. Este, no entanto, foi se esvaindo na medida em que as perspectivas de financiamento e de apoio federal se dissolveram com o Golpe de Estado de 2016 e com a subida ao poder de um governo cujo mote central na área econômica é o corte de “gastos desnecessários”. Assim, objetivos formulados entre os anos de 2014 e 2015 foram revistos visando à menor necessidade possível de recursos.

 

Dentro dessa reprogramação, o atual projeto de integração metropolitana do transporte público da RMF visa manter as zonas tarifárias do antigo sistema intermunicipal, na área continental, bem como não interferir no sistema licitado em 2014, em Florianópolis, ao qual se integrará apenas fisicamente. Ressalta-se que há receios entre as operadoras de transporte público de Florianópolis com relação a uma eventual opção por uma tarifa única metropolitana, pois os custos das linhas de baixo IPK e baixo IR da área continental – na medida em que já não se fala em uma política de subsídios –, deverão ser arcadas por todo o sistema.

 

Vale ressaltar que no atual projeto não se considera a implantação de corredores exclusivos, jogando por terra a concepção do BRT, formulada anteriormente. Assim, se objetiva a construção de dois terminais na parte continental da RMF – embora se cogite efetuar essa integração sem nenhum novo terminal –, para os quais convergiriam linhas alimentadoras dos municípios continentais da região. Um dos terminais se localizaria na divisa de Biguaçu e São José e outro na divisa de Palhoça com São José, em função dos custos dos terrenos nas áreas mais centrais desses municípios. Como se pode observar, a questão do financiamento e das decisões em termos de investimento são essenciais, mas esta, por seu turno, passa por tomadas de decisão que são essencialmente políticas. Diversos exemplos nos mostram que, para os capitais catarinenses de conjunto – os quais modulam a tomada de decisão política –, a mobilidade urbana na Região Metropolitana de Florianópolis não se conforma enquanto uma pauta prioritária de financiamento e investimento, ao contrário do que se aparenta.

 

Um desses exemplos remete à operação de crédito solicitada ao BNDES em 2017 (PL 148/2017), na qual o governo do estado negociou R$ 1 bilhão e 500 milhões para infraestruturas no estado. O projeto de lei foi enviado para apreciação da ALESC, sugerindo a divisão dos recursos para: 1) Investimentos de R$ 700 milhões em rodovias, com o objetivo de finalizar as obras do Pacto por Santa Catarina, constituídas de rodovias e trechos rodoviários dispersas por todo o estado; 2) Viabilizar o FUNDAM 2 (Fundo Estadual de Apoio aos Municípios), fundo que repassa recursos do estado para os municípios e; 3) R$ 300 milhões para o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável na RMF e para a Ponte Hercílio Luz. A falta de prioridade se nota na recomendação da casa, de diluir os recursos que seriam direcionados à mobilidade urbana regional, no FUNDAM e nas rodovias.

 

Esses e outros exemplos demonstram que o interesse no planejamento da mobilidade urbana e em sua institucionalidade só ocorrem de modo mais contundente se a qualidade da força de trabalho, de fato, é um processo essencial para a reprodução do capital de uma determinada sociedade. A questão da mobilidade urbana, bem como outros aspectos ligados à reprodução social, como educação, saúde, lazer, acesso a equipamentos culturais e de desporto, entre outras, são uma variável dos próprios padrões de desenvolvimento de uma determinada sociedade.

 

BIBLIOGRAFIA

 

JARAMILLO, Samuel. Crisis de los medios de consumo colectivo y capitalismo periférico. Desarrollo y Sociedad. 1981, p.127-145.

MACKINNON, Danny; SHAW, Jon. Devolution as process: institutional structures, state personnel and transport policy in the United Kingdom. Space and Polity, 2010, vol.14, no. 3, p. 271-287.

RANGEL, Ignácio. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

VAINER, Carlos B. Planejamento territorial e projeto nacional: os desafios da fragmentação. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. 2007, vol.9, no.1, p. 09-23.

 
 
 

Dr. Rodrigo Giraldi Cocco

Pós-Doutorando CNPq, bolsista PDJ.

UFSC.

O transporte fluvial no Paraguai

04/11/2019 13:00

O Paraguai, principalmente pelo escoamento de soja, nos últimos anos se tornou o líder em transporte hidroviário interior (fluvial) na América Latina (considerando a quantidade movimentada – toneladas), e está na terceira posição em âmbito mundial, atrás apenas dos Estados Unidos e da China (AGENCE FRANCE-PRESSE, 2018). O Paraguai não possui litoral, todavia, há rios com grande volume de água em seu território, com cursos em direção ao sul do país, caso do Pilcomayo, Paraná e Paraguai. O rio Paraná divide o território brasileiro e paraguaio, o rio Paraguai “corta” as planícies e “divide” o país em suas partes oriental e ocidental, e próximo à capital Assunção desemboca o Pilcomayo, com um curso que atravessa a região do Grande Chaco (importante área agrícola) (imagem 1).

 
 

Imagem 1 - Paraguai: principais cidades e cursos fluviais.

Nos anos de 2016 e 2017, o país sul-americano exportou 6 milhões de toneladas de soja, sobretudo para a União Europeia e Rússia. A frota de embarcações é operada por 46 empresas estrangeiras e 7 nacionais (paraguaias), sendo constituída, em 2018, por 3 mil barcaças e 200 rebocadores (AGENCE FRANCE-PRESSE, 2018). Os granéis sólidos são escoados via hidrovia e se destinam a portos do Uruguai (Nueva Palmira e Montevidéu) e da Argentina (Rosário e Buenos Aires) (imagem 2), e a partir daí, as cargas seguem em navios (transporte marítimo) para a Europa, Estados Unidos e Ásia.

 
 

Imagem 2 - Principal rota das cargas hidroviárias oriundas do Paraguai.

 

Na década de 1990 houve uma grande expansão do cultivo de soja no Paraguai, estimulada, sobretudo, pelo aumento dos preços das commodities no mercado internacional e pelos baixos custos aos produtores (muitos deles brasileiros). O crescimento da produção de grãos e farelos gerou demanda por transporte, especialmente pelo hidroviário, diante das possibilidades existentes no território (cursos fluviais perenes e com grande volume de água).

 

O Paraguai conseguiu avançar no transporte hidroviário interior por diversos fatores, quais sejam: planejamento estatal, investimentos públicos e privados, alterações/adequações do sistema normativo e tributário, financiamentos, aprimoramento da logística (transporte e armazenamento), inventivos fiscais que atraíram as empresas operadoras logísticas, os estaleiros e os armadores (atuação de empresas paraguaias e estrangeiras), além das dragagens para melhorar as condições de navegação nos três principais rios do país. Ademais, nas duas últimas décadas formou-se uma mão de obra importante para atender às demandas setoriais, com destaque aos cursos técnicos e superiores.

 

Houve ainda outros dois fatores que influenciaram/fomentaram o transporte fluvial no Paraguai: a criação do Mercosul (em 1991) e o Tratado da Hidrovia Paraguai-Paraná (em 1992), envolvendo a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai. Dessa maneira, é importante considerar a teoria das combinações geográficas (CHOLLEY, 1964), pois a combinação de diversos fatores possibilitaram o avanço do transporte hidroviário no território paraguaio, caso dos naturais/físicos (cursos fluviais), políticos (incentivos/ações estatais), econômicos (produção/circulação/demanda) e sociais (consumo).

 

De acordo com o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (2018), o Paraguai apresentou uma produção de 700 mil toneladas de soja em 1992-1993, passando para 4,5 milhões de toneladas em 2002-2003. Atualmente, é o sexto maior produtor mundial, com 10,6 milhões de toneladas em 2016-2017, além de ser o quarto maior exportador, com 6,1 milhões de toneladas no mesmo período. A soja possui destaque no Paraguai, representando, em 2017, 70% da área cultivada e 40% das exportações do país.

 

As embarcações que navegam pelos rios (imagens 3 e 4) não escoam apenas a produção paraguaia, mas também parte da soja brasileira (estado de Mato Grosso do Sul) e matérias-primas da Bolívia (sobretudo zinco e seus concentrados). Isso foi estimulado pela inauguração do novo porto de Concepción em 2018 (localizado na região central do Paraguai – imagem 2). No ano de 2017, 21 milhões de toneladas de mercadorias foram transportadas pelos principais cursos fluviais paraguaios (Pilcomayo, Paraná e Paraguai) e, para 2030, a estimativa é de 56 milhões de toneladas, segundo informações do Centro de Armadores Fluviais e Marítimos do Paraguai.

 

Imagem 3 - Empurrador e chatas que realizam o transporte fluvial no Paraguai.

Imagem 4 - Comboio fluvial carregado com grãos no Paraguai.

De acordo com os dados do Centro de Armadores Fluviais e Marítimos do Paraguai, em 2017, a construção naval no país representou 2,3% do produto interno bruto (PIB) do país, recebeu investimentos de US$ 5 milhões, apresentou US$ 800 milhões de faturamento em fretes, além de gerar 5,4 mil empregos diretos e 16 mil indiretos.

 

Há um projeto do governo paraguaio, somado aos interesses da iniciativa privada, de impulsionar o transporte hidroviário de passageiros na próxima década, com previsão de investimentos via parcerias público-privadas (PPPs) e por meio de financiamentos internos e externos. Diariamente 250 mil pessoas se deslocam de outras cidades para trabalhar na capital Assunção (forte concentração das atividades econômicas – indústrias, comércio e serviços) (AGENCE FRANCE-PRESSE, 2018). Considerando esse grande fluxo diário de trabalhadores, é relevante fomentar o transporte fluvial de passageiros (construção de embarcações adequadas, contratação de profissionais especializados, estabelecimento de rotas e itinerários, regularidade, qualidade do serviço prestado, preços reduzidos das passagens para atrair as pessoas etc.).

 

As infraestruturas e os meios e vias de transportes permitem a criação de redes e fluxos no território, sendo fundamentais para a dinâmica econômica local, regional e nacional. A técnica, os fixos, as ações públicas e privadas e a otimização das estratégias logísticas permitem atender às demandas de diversos países por meio do transporte fluvial, aumentando a eficiência do escoamento de cargas no território e a competitividade no mercado internacional.

 

As interações espaciais potencializadas a partir do transporte hidroviário interior de mercadorias atribuem maior dinâmica ao território e à economia paraguaia. A modernização do sistema de comunicação e transportes, bem como a otimização das estratégias logísticas e competitivas das empresas, potencializam a fluidez no espaço. Ademais, o custo do transporte fluvial é um fator relevante, pois há uma redução média de 25% dos gastos das empresas em comparação ao modal rodoviário, somado à grande capacidade dos comboios fluviais – um comboio constituído por 15 barcaças equivale a 1050 caminhões carregados nas rodovias.

 

Por fim, destaca-se que a expansão do modal hidroviário no Paraguai gerou/gera impactos em outros territórios, caso do Brasil, da Bolívia, da Argentina e do Uruguai, com reflexos nas interações espaciais, na produção agrícola (principalmente de soja, farelos e minérios), nas atividades portuárias (fluviais e marítimas), nos fluxos de comércio, nos investimentos (especialmente ligados ao agronegócio), na busca por novas parcerias/acordos comerciais (inclusive envolvendo o Mercosul), entre outros.

 

Prof. Dr. Nelson Fernandes Felipe Junior

UNILA/ILATIT

PPGEO/UFS

Tags: América do SulDesenvolvimentoInfraestruturas de transporteParaguaiParaguayTransporte fluvialTransporte hidroviárioTransportes
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