O patrimônio cultural ferroviário no Ramal São Francisco: da formação das cidades até as recentes reestruturações
O início da exploração da malha ferroviária no Brasil data-se do ano de 1852, ainda no período imperial, conforme dados do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT, 2018), onde cita o Decreto n.º 641 de 26 de junho de 1852, que propunha vantagens, isenções e garantias aos investidores nacionais e estrangeiros. Este movimento teve como início a necessidade de escoar com maior facilidade a produção agrícola dos Estados para as regiões portuárias. Conforme Carrion (2015), a partir da instalação das primeiras ferrovias no país, a expansão ferroviária deu-se de forma rápida. Ainda, segundo o autor, estima-se que em 1907 a malha ferroviária atingia 17.280 quilômetros, transportava 35 milhões de passageiros e 7,5 milhões de toneladas de carga. Estes números demonstram o grande potencial econômico do meio de transporte, devido a sua utilização para o transporte de pessoas e escoamento da produção agrícola e extrativista. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 1957), o sistema ferroviário no Brasil chegou a aproximadamente 38 mil quilômetros de extensão, sendo considerada a 8ª maior ferrovia do mundo.
A ferrovia é concluída na região nordeste do estado de Santa Catarina no ano de 1910, com ramal que fazia parte da Estrada de Ferro São Paulo Rio Grande (EFSPRG) conforme retratado por Henkels (2005) “[...] na concessão original (da EFSPRG) se previam dois ramais laterais, um para Guarapuava PR e outro que buscasse algum porto no estado de Santa Catarina a ser definido”. O porto escolhido foi o de São Francisco do Sul, então em 1903 começam os estudos para construção do Ramal São Francisco, que partiria “[...] de Rio Negro, no Estado do Paraná, atravessaria a Serra Geral (atual Serra do Mar), passando por Joinville, em busca de um porto na baía de São Francisco.” (HENKELS, 2005). A obra era vista com bons olhos pela população, que a compreendia como um instrumento de desenvolvimento, sendo que a estrada de ferro mudou as características sócio-econômicas da região levando, inclusive, a criação de municípios como Jaraguá do Sul, que antes era distrito de Joinville.
Figura 1: Estação Ferroviária de Jaraguá do Sul, Terminal de Passageiros em 1962.
Fonte: Acervo de Ergon Arno Krepsky
A RFFSA foi criada em 1957, através da Lei nº 3.115, de 16 de março de 1957, com o objetivo principal de promover e gerir os interesses da União no setor de transportes ferroviários. Além disso, a empresa seria responsável por resolver conflitos referentes à falta de integração das malhas ferroviárias brasileiras, que:
Estavam voltadas à exportação de produtos primários, eram desarticuladas entre si, atendiam a interesse privados localizados, não seguiam parâmetros técnicos comuns (do que a diferença de bitolas é a expressão mais óbvia) o que dificultava a integração física entre as diferentes malhas e aumentava os custos de operação, devido à necessidade de sucessivos transbordos de cargas (CARRION, 2015).
Com isso, a partir da década de 1960, o transporte ferroviário começa a sofrer um declínio em todo o país, Santos e Silva (2015) afirmam que isso deu-se devido a substituição dos investimentos na área pelo investimento no transporte rodoviário, que apesar de mais custoso a longo prazo, exige menos investimentos para sua aplicação. Telles (2011) declara que esta mudança ocorre principalmente após a instalação da primeira indústria automobilística no país. Com a popularização do transporte rodoviário e o investimento feito na construção de estradas (como a BR-101 e BR-280) o transporte de passageiros por ferrovias começa a sofrer um processo gradativo de abandono “[...] com a diminuição dos passageiros e cargas, com a competitividade do transporte rodoviário e com a diminuição dos investimentos do Governo Federal” (JULIO e SILVEIRA, 2016).
Entre os anos de 1996 e 1998, o modelo ferroviário brasileiro foi segmentado em seis malhas regionais, concedendo a empresas privadas o direito de exploração das malhas pelo período de 30 anos. Com isso, a RFFSA foi dissolvida através do Decreto nº 3.277, de 7 de dezembro de 1999.
Com a extinção da RFFSA, a maioria das estações foram fechadas por falta de utilidade na operação para o transporte de cargas, processo que levou à deterioração gradativa dos prédios, devido ao esquecimento e invasões recorrentes, representando uma ameaça iminente ao desaparecimento de importantes exemplares do Patrimônio Cultural Ferroviário.
Figura 2: Estação Rio Vermelho em São Bento do Sul em 2018
Fonte: Acervo de Anthar C. Hartmann
O Conceito de Patrimônio Cultural surge em 1988 na Constituição Federal, em seu Artigo 2016 que ampliou o conceito de patrimônio estabelecido pelo Decreto-lei nº25, de 30 de novembro de 1937, substituindo a denominação de Patrimônio Histórico e Artístico por Patrimônio Cultural Brasileiro. Essa alteração incorporou o conceito de referência cultural a definição dos bens passíveis de reconhecimento, sobretudo os de caráter imaterial
Com a necessidade de nomear-se um órgão para ser o responsável pelo espólio da extinta RFFSA, Prochnow (2014) afirma que a Lei nº 11.483 de 31 de maio de 2007 foi responsável por atribuir ao IPHAN a responsabilidade pela preservação dos cerca de 50 mil bens móveis e imóveis:
Art. 9o Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção (BRASIL, 2007).
Ao fazer uma análise superficial da estrutura das cidades do nordeste de Santa Catarina, já é possível perceber a importância histórica da ferrovia e sua relevância na compreensão da morfologia urbana dos municípios por onde passa. A malha ferroviária é um dos principais estruturadores de formação das cidades. É quase impossível encontrar áreas onde as estações não estejam em regiões urbanas ou de pequenas centralidades, desenvolvidas predominantemente durante o período de utilização das linhas para o transporte de passageiros.
Como exemplo claro deste processo, podemos usar o município de Jaraguá do Sul, que teve o início de sua ocupação às margens do rio Itapocu. Com a instalação das estações ferroviárias (uma no atual bairro Centro e outra no atual bairro Nereu Ramos) a ocupação da cidade começa a se desenvolver naquelas regiões, incentivando a formação de centros comerciais e de serviços conforme retratado por Costa (2015) ao afirmar que “[...] a estrutura influenciou a vida social de Jaraguá do Sul. O local também era um ponto de encontro da comunidade”.
Sendo assim, deve-se considerar a ferrovia e os bens móveis e imóveis provenientes de sua exploração, principalmente no século passado, parte da dinâmica social de diversas cidades, ao ocupar papel importante na memória de seus habitantes. Porém, ao realizar pesquisas de publicações sobre o assunto, é possível perceber a falta de documentos que comprovem esta relação, o Patrimônio Cultural Ferroviário encontra-se em risco. Atualmente existe dificuldade por parte do IPHAN em gerir e garantir a manutenção dos bens imóveis, sem contar o problema relacionado aos bens móveis que correm grande risco de desaparecer como retratado por Xavier e Constantino (2017, p. 162):
Em relação às cidades que possuem esse acervo, sabemos que existe um rico conjunto de edificações ferroviárias que merece atenção e ações efetivas dos órgãos de preservação municipais e estaduais, visto que muitos edifícios ainda estão abandonados, alguns deles na zona rural, sendo necessárias medidas urgentes de restauro e conservação, evitando assim maiores perdas deste patrimônio.
Este projeto visa enfatizar a importância da ferrovia como instrumento transformador do espaço. Ao mapear a estrutura urbana no entorno das edificações de patrimônio ferroviário na região nordeste do Estado, será possível esclarecer para as futuras gerações a importância destes no processo de desenvolvimento das cidades. Além disso, ao propor este estudo será possível ter uma visão do patrimônio ferroviário no região de forma menos generalista, garantindo o respeito às suas particularidades sócio-econômicas.
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