Transporte aéreo no Brasil em tempos de Covid-19: possibilidade de um novo mercado?

28/03/2020 13:00

De acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), 2019 foi o primeiro ano após 2009 que a aviação obteve um crescimento anual inferior a 5%. Entretanto, outras variáveis se destacaram, como a pontualidade, taxa de ocupação e oferta de assentos, resultado dos aperfeiçoamentos logísticos que as companhias aéreas vêm adotando nos últimos anos por intermédio da indústria da aeronáutica. Contudo, do ano de 2019 para 2020, a imagem de aviões paralisados em aeroportos por todo o mundo vem tomando proporção conforme o avanço da COVID-19 (coronavírus). A pandemia que assola o planeta vem obrigando as companhias aéreas a adotarem medidas severas de contingenciamento de gastos. Dentre essas ações podemos destacar a paralização de voos internacionais e intercontinentais, além da alteração drástica da malha aérea e redução dos postos de emprego.

Figura 1: Aeroporto Logístico do Sul da Califórnia em Victorville, Califórnia.

Foto: Mark Ralston AFP/Getty Image.

Disponível em: Los Angeles Times, 2020

Embora a imagem acima seja condizente com o maior tráfego aéreo do mundo (E.U.A), no Brasil há de se tornar também realidade, sobretudo, após a publicação da ANAC no dia 27/03/2020, noticiando uma redução de 91% da malha aérea prevista pelas companhias aéreas brasileiras para o mesmo período sem anormalidades. A curva de casos do COVID-19 no Brasil inicia a escala para o momento de ápice, e um dos elementos fundamentais para diminuir o pico é a redução da circulação no país.

 

Ao observar como o vírus se instalou nos diferentes países do mundo, fica evidente que as menores ocorrências se deram justamente nos países que restringiram severamente a circulação de pessoas e mercadorias. Isto é, referem-se à diminuição quase que total dos meios de transporte em massa, dentre eles o transporte aéreo. Entretanto, a grande incógnita levantada pelas companhias, diante da paralisação das atividades, diz respeito aos custos operacionais obrigatórios com manutenção e pessoal.

 

Os mesmos agentes que buscam aplicar o modelo de livre mercado e intervenção mínima do Estado vão aos seus respectivos Governos solicitarem ajuda e resgate para o período de crise. Trata-se da maior crise que o setor teve desde seu início no primeiro quarto do século XX (do ponto de vista global). Por mais que seja contraditória pregar a menor atuação do Estado, mas ao mesmo tempo depender dele para se manter positiva, devemos ressaltar que as operações aéreas exigem cada vez mais da relação/interação a logística de Estado e a logística corporativa, atuando de forma combinada em prol de um maior bem-estar social, isto é, o Estado agir como órgão mais atuante a favor da população, e não apenas para as grandes corporações.

 

No Brasil, podemos destacar a atuação da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC) e da Secretaria da Aviação Civil (SAC), como os principais agentes normativos do setor, e também de órgãos representantes do meio corporativo como a Associação Brasileira da Aviação Civil (ABEAR). A aviação comercial brasileira sempre apresentou picos de movimentação desde o início das suas operações regulares na década de 1920 até o período recente, o qual se configura como período de transição de um segundo oligopólio (Gol, Latam e Azul) para a internacionalização do setor.

 

Entretanto, as respostas das companhias aéreas “brasileiras” têm sido semelhantes, como a redução de frota ativa (operando apenas as que possuem melhor custo-benefício), antecipação de férias, fechamento de bases (principalmente as regionais), licenciamento não-remunerada de trabalhadores, suspensão de voos internacionais, diminuição e corte de serviços de bordo, dentre outras ações (quem se beneficiou com isso foi o mercado financeiro, que assistiu a uma drástica desvalorização e recentemente uma nova valorização das ações das companhias). Por outro lado, o receio de viajar fez com que muitas viagens fossem canceladas ou adiadas, porém sem custos adicionais para o usuário.

 

O principal ponto de reflexão neste momento delicado de avanço do COVID-19 é exatamente a circulação que envolve o transporte aéreo. Isto é, as interações espaciais proporcionadas pela aviação numa escala local-global e vice-versa. Ora, numa operação aeroportuária envolvem-se agentes que circulam em diversos espaços, desde a tripulação a equipes de solo, manutenção, limpeza, catering, agentes aeroportuários, lanchonetes e restaurantes, transporte coletivo ou por aplicativo, dentre outros.

 

Isto significa que é incalculável a quantidade de pessoas e cargas que colaboram para a circulação dos fluxos aéreos. A estratégia de enxugamento das companhias brasileiras visou à concentração de voos nos seus hubs, isto é, nos principais aeroportos do estado paulista, exatamente no epicentro da pandemia no país. Se, por um lado, já foi comprovado que o COVID-19 chegou ao país por voos internacionais, por outro não se sabe quantas pessoas poderiam ter sido contaminadas. Diante do tempo de 3 a 5 dias para que o vírus se manifeste no corpo humano, muitas pessoas podem ter viajado sem ao menos saber que estavam contaminadas.

 

Isso serve de alerta. No que diz respeito à política de centralização das operações adotada pelas companhias aéreas brasileiras, trata-se de postura absolutamente equivocada, que tende a causar impactos negativos. Propor a ideia de conexão de voos exatamente onde há mais casos, só favorece uma maior circulação de pessoas (mesmo que a aviação esteja em números reduzidos). Veja-se, ainda, que as pessoas que trabalham nesses locais ficam mais vulneráveis ao vírus, e a chance de propagação é maior, principalmente devido ao contingente populacional da região.

 

Se observamos a quantidade de municípios com casos confirmados até o momento e a quantidade de voos que ocorreram no mês anterior, veremos que na sua maioria há um grande contingente populacional e circulação de pessoas, além da presença de aeroportos, basta vermos a figura abaixo. E em paralelo, temos a redução de 90% da malha área, concentrando voos exatamente em locais com grandes números de casos.

 

Figura 2. Mapa dos fluxos aéreos e do COVID-1

Embora seja recomendada a suspensão total da circulação como um todo, é necessário lembrar dos deslocamentos que precisam ser realizados de forma urgente, e que nessa relação espaço-tempo a aviação se destaca. Por isso, não é recomendável a suspensão completa, mas que seja ofertada uma demanda que seja apenas essencial. Contudo, o ato de concentrar voos em uma localidade, como estado de São Paulo, facilita a propagação do vírus. Uma boa estratégia seria a utilização de aeroportos mais isolados, com um menor número de pessoas circulando. O que estamos afirmando aqui é que o transporte aéreo (assim como outros meios de locomoção em massa) é um dos agentes responsáveis pela propagação do vírus, e o mesmo deve ser utilizado com o máximo de cautela e planejamento.

 

De antemão, o Covid-19 já deixou evidente alguns pontos que precisam ser revisados no que diz respeito à aviação comercial:

  • O Estado precisa intervir de forma mais consistente no setor aéreo, isto é, ser um agente mais ativo na aviação, buscando uma harmonia entre o meio corporativo e o usuário, diminuindo o domínio completo do mercado e estabelecendo mais regulação.

  • Revisão urgente dos algoritmos geradores das tarifas aéreas, pois nesse cenário houve uma queda considerável do preço das passagens, o que nos mostra que é possível uma redução do valor da passagem.

  • O Estado deve revisar o sistema de tributação sobre os serviços aeroportuários.

  • Num cenário de redução de custos, as fusões, associações, falências e aquisições serão cada vez mais visíveis, cabendo aos organismos de regulação a adoção de medidas que levem em conta os diferentes cenários, pois isso acarretará na concentração de capital, ao mesmo tempo em que postos de trabalho poderão ser extintos como forma de enxugamento da folha salarial.

  • Proteção aos trabalhadores do setor aéreo, tendo em vista a dinamicidade do setor diante das realidades socioeconômicas.

  • No caso brasileiro, por ter a flexibilidade 100% de capital estrangeiro nas empresas aéreas, assistiremos a fuga de capital para o meio corporativo (embora as companhias estejam na bolsa de valores).

  • Necessidade de revisar o sistema de hub e o fortalecimento (ou renascimento) da aviação regional quando houver a normalização da economia.

  • Revisar as políticas sanitaristas visando novas formas de conter possíveis pandemias futuras. Isto é, no âmbito nacional, por intermédio da Agência Brasileira de Vigilância Sanitária (ANVISA), criar um sistema que sirva de barreira para chegada de estrangeiros no país, tendo em vista que a maior parte dos contaminados do COVID-19 desembarcaram no Brasil em voos oriundos da Europa ou em navios de cruzeiro. Não se trata de proibir, mas de usar novas formas de precaução, como quarentena obrigatória em determinados casos, exames médicos rápidos, exigência de vacinas, dentre outros.

  • A retomada de crescimento econômico na escala nacional deveria se dar por intermédio do Estado. Entretanto, observando as formas debilitadas de atuação do Governo Federal, será algo que levará um bom tempo para a retomada de crescimento, principalmente diante da ausência de políticas desse tipo, como foi o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e o Plano de Integração Logística (PIL), que mostraram a capacidade de crescimento do PIB brasileiro entre 2003 e 2012. Logo, acredita-se que na aviação o ritmo também se dará de forma devagar e anêmica, tendo em vista os serviços que necessitam do deslocamento via modal aéreo, como o turismo, responsável por uma parcela considerável do PIB nacional.

  • A necessidade de isolamento demonstrou no setor que há a possibilidade de enxugamento de diversos postos de trabalho, principalmente aqueles que exigem o quantitativo humano. Parte deles são feitos à distância. Entretanto, no setor aéreo algumas dessas mudanças já eram visíveis, como despacho automático, check-in online, embarque por código, ações pelo celular, dentre outras ações que há menos de 10 anos eram realizadas por trabalhadores.

Há a necessidade do Estado Nacional atuar em conjunto com os Governos Estaduais no combate ao COVID-19 (o que não vem acontecendo no Brasil). A limitação da circulação de pessoas (a qual inclui o transporte aéreo) em alguns estados foi medida implementada drasticamente, justamente por se considerar que é a principal forma de propagação do vírus, e o transporte aéreo assume esse papel de transmissor (mesmo que indiretamente). Portanto, quanto mais cedo a população se precaver, mais cedo a economia voltará a funcionar normalmente, embora se saiba que a recuperação não se dará em questão de dias. Mas, para isso, o Estado (principalmente federal) deve tomar medidas para que a população mais carente tenha acesso a fontes de renda, deixando apenas a operacionalidade de serviços essenciais.

 

As sequelas que o covid-19 deixará para o setor aéreo ainda são incalculáveis. No entanto, a necessidade de rever a forma de atuação do setor aéreo também é urgente. Os grandes capitais sempre agem em prol da lucratividade. O Estado (via neoliberalismo) flexibiliza ao máximo as regras do setor de forma predatória em prol do livre comércio, mas pouco pensa no bem-estar social, mas, sim, em atender aos interesses das grandes corporações. Talvez esse seja o momento para repensarmos no tipo de aviação que queremos. O alarmismo que o setor vem tonalizando no último mês é reflexo de que as ações da logística de Estado e corporativa devem agir de forma combinada em prol da população, pois sem passageiros não há fluxo. E diante desse contexto convém resgatar o pensamento de Milton Santos: de que o espaço é formado por um conjunto indissociável de sistemas e objetos em interação.

 

A concentração de voos (sistema de hub-and-spoke) precisa ser revista para evitar possíveis aglomerações em áreas com alto índice de casos. No entanto, para o capital corporativo, quanto menor o custo, maior o lucro (mesmo em períodos de crise), objetivando uma maior centralização do capital. Longe, é claro, da preocupação com o bem-estar social das pessoas envolvidas nessas interações espaciais que são propagadas por intermédio do transporte aéreo.

 

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Me. Lucas Azeredo Rodrigues

Graduado em Geografia (UFFS)

Doutorando em Geografia (PPGG-UFSC)

Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística – LABCIT (UFSC)

Grupo de Estudos sobre Dinâmicas Regionais e Infraestrutura – GEDRI (CNPq)

Núcleo de Estudos sobre Transportes – NETRANS (UNILA)

ANEXOS

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