Os impasses do planejamento da mobilidade na Região Metropolitana de Florianópolis (RMF)
Passados cinco anos da realização do estudo do Plano de Mobilidade Urbana da Região Metropolitana de Florianópolis (PLAMUS) de 2014, sob encomenda do estado de Santa Catarina, observa-se que poucas soluções foram colocadas em marcha no sentido de solucionar os problemas de mobilidade na região. Os estudos de origem-destino; sobe-e-desce; contagem de tráfego; frequência e ocupação visual, e outros, foram reveladores do quadro de deterioração geral das condições de mobilidade, mas sua operacionalização na forma de políticas públicas tem esbarrado em contradições que envolvem o próprio Estado e os blocos de poder nele entronizados. Assim, os projetos e as capacidades institucionais de realizá-los, tem incorrido em visíveis retrocessos.
O plano concebido no ano de 2015, de integrar a Região Metropolitana de Florianópolis através de um sistema BRT (Bus Rapid Transit) foi substituído recentemente por uma proposta de integração ainda mais conservadora que o próprio BRT. Enquanto isso, infraestruturas pontualmente construídas no decorrer do último quadriênio, como por exemplo, a duplicação da SC-403 efetuada em 2017, não tem surtido o efeito desejado. O fato é que apesar das ampliações viárias, a inexistência de corredores exclusivos para transporte público (Figura 1) tem piorado significativamente as condições de mobilidade. Ademais, a construção de novos empreendimentos nas extremidades dos bairros – sem a devida qualificação urbanística, tais como Comprefort e Havan, no Norte da Ilha –, bem como em eixos usados para deslocamento pendulares, como os empreendimentos da “Rota da Inovação”, na rodovia SC-401, tem aumentado o volume de automóveis em espaços não qualificados para tal.
Figura 1 – Congestionamento na rodovia SC-401 após duplicação e sua afetação sobre os transportes públicos, em 2018.
Fonte: https://ndmais.com.br/noticias/buraco-na-sc-401-provoca-mais-de-oito-quilometros-de-congestionamento-em-
Ao mesmo tempo, os sistemas de transporte público da região têm exibido uma persistente deterioração em suas taxas de renovação de passageiros e condições de execução de sua logística corporativa, entre outros problemas decorrentes da dispersão urbana regional combinada à inação do Estado. Exemplo disso é a utilização de veículos intermediários aos ônibus articulados – os ônibus “15 metros” –, nos horários de entre-picos, visando a reduzir custos operacionais crescentes. Assim, a ausência de um planejamento público que integre serviços de transportes, uso do solo e infraestruturas, dá lugar a estratégias e tecnologias voltadas à logística corporativa, que não se revertem em melhoras nas más condições de mobilidade – ou, quando muito, amenizam muito timidamente essas más condições –, para o usuário.
Nesse contexto, considerando a ineficácia das instituições públicas de planejamento da mobilidade metropolitana na região, cabe questionar: quais são os principais aspectos condicionantes dessa ineficácia? O primeiro fato a ser destacado remete ao aprofundamento histórico do neoliberalismo no planejamento, consubstanciado na vitória ideológica dos “neo-localismos competitivos”, provenientes da ausência de um pacto federativo que consubstancie objetivos de planejamento e desenvolvimento nacional/regional (VAINER, 2007). Assim, como expõe Rangel (2005), a atividade de planejamento não se pode fazer em quaisquer condições, mas apenas em sociedades estáveis, conscientes de sua unidade e socialmente coesas. Nesse caso, as dualidades que historicamente compõem a sociedade e o Estado no Brasil teriam que desaparecer, dando lugar a uma maior homogeneização da sociedade, mas isso não ocorreu (RANGEL, 2005).
Nessa lógica, ao mesmo tempo em que historicamente se delegaram poderes e responsabilidades aos estados e municípios, não houve uma promoção da cooperação entre eles e tampouco houve garantia de recursos contínuos a esses entes. Assim, instituições desconcentradas – ou “devolvidas” (MACKINNON et al, 2010), como expressa a literatura internacional –, ao contrário dos casos europeus, no caso brasileiro foram, na verdade, esvaziadas de suas capacidades reais de planejar. É o que temos visto no caso catarinense.
Nesse processo, antigos órgãos de planejamento catarinenses, cujas competências e capacidades eram promissoras no sentido de solucionar e encaminhar questões candentes do território, foram sendo extintos ou substituídos por Secretarias de Estado, com grande volume de cargos comissionados e poucos técnicos de carreira. O Instituto Técnico de Economia e Planejamento - ITEP (1979), o Gabinete de Planejamento - GAPLAN (1983), entre outras, foram iniciativas contundentes que atuaram como vetores de execução de projetos, além de acumularem dados significativos sobre o território, com fins de planejamento. Estas foram extintas no decorrer de mudanças de governo.
O GAPLAN, por exemplo, criando durante o governo Jorge Bornhausen, 1979-1982, surge de uma estrutura de perfil técnico, proveniente de outra instituição igualmente operativa: o Instituto Técnico de Estatística e Planejamento (ITEP), que data do Governo Antônio Carlos Konder Reis, 1975-1979. O GAPLAN possuía subchefias especializadas e setorizadas, para a elaboração de trabalhos de geografia, cartografia, identificação e demarcação de limites territoriais intermunicipais e distritais, bem como para a realização de estudos de geografia regional. Ademais, dava suporte específico ao planejamento nos municípios e questões ligadas ao meio ambiente (dando origem à FATMA). Durante a devastação do estado pelas enchentes de 1983, foi o PROURB, de iniciativa do GAPLAN, que recuperou 70% das estradas destruídas.
O fato é que no período posterior à redemocratização, observou-se no Brasil e também em Santa Catarina, um processo de desmontagem das instituições de planejamento mais ativas. O GAPLAN, por exemplo, foi extinto pelo então governador Vilson Pedro Kleinübing (1991-1994), que redirecionou parte de seus técnicos à Secretaria do Planejamento e Fazenda. Ao mesmo tempo, foram efetuadas “devoluções” de competências aos municípios, que – salvo algumas exceções– não significaram um aumento da capacidade de planejar. As novas atribuições incorporadas pelos municípios, seguidas de uma capacidade de investimento declinante, só sucateou ainda mais as instituições pré-existentes.
A história do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), criado em 1977, exemplifica bem esses problemas. O IPUF não se converteu em uma “rótula de concertação” com atuações metropolitanas, nem tampouco avançou em termos de capacidades técnicas de execução, muito embora a lei de criação do instituto já previsse a extensão de suas atribuições de planejamento ao conjunto da Grande Florianópolis.
O fato contundente é que apesar de surgir como uma iniciativa promissora, o órgão foi sendo sufocado. Nota-se que a autarquia estagnou em termos de pessoal, sendo que praticamente os mesmos técnicos contratados na década de 1970 prosseguiram na instituição. Muitos deles aposentaram e não houve substituição, o que era observável pela grande presença de estagiários e poucos técnicos de carreira. Entre os anos de 2005-2012 – dando continuidade a em um processo de desmonte que se iniciou anteriormente a ele – houve um enfraquecimento do órgão. No período, a autarquia já não conseguia fazer avançar nenhum processo licitatório, bem como houve retirada de atribuições, direcionadas novamente a uma secretaria: a Secretaria de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Urbano de Florianópolis. Assim, além de uma desmontagem efetuada na esteira do avanço neoliberal, observa-se um certo sentido estratégico de controle do Estado, por parte das elites regionais: retiram-se atribuições das mãos de técnicos de carreira e planejadores, colocando essas atribuições em mãos de cargos comissionados em secretarias, como forma de atender a barganhas políticas.
As descontinuidades que penalizaram o IPUF se refletiram na própria estruturação do Sistema Integrado de Transportes de Florianópolis (SIT), como resultado de conflitos políticos entre os grupos de poder regionais e da ausência de uma autarquia metropolitana pré-existente. O SIT, desde sua concepção, já expressava as dificuldades de integração de trabalho metropolitana. Inicialmente, o sistema inspirou-se na RIT (Rede Integrada de Transportes) da Região Metropolitana de Curitiba, sem, no entanto, estruturar-se dentro de uma institucionalidade metropolitana. O SIT, concebido durante a administração da prefeita Ângela Amin (1997-2005) – antecessora de Dário Berger –, não avançou no sentido de um sistema metropolitano por um conjunto de problemas estruturais que advieram. O primeiro que pode ser citado é a descontinuidade política e institucional. Assim, podemos elencar como fatores: a ausência de uma personalidade jurídica que integrasse de fato a região; a falta de recursos para desapropriação e construção de terminais em locais adequados; recursos para a manutenção contínua da atividade de planejamento e; falta de integração de trabalho entre as prefeituras da região e o estado.
Atualmente, a instituição incumbida da tarefa de planejar a mobilidade urbana regional é a Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Florianópolis (Suderf). A lei estadual 636 de 2014, que instituiu a Suderf, expressa seu objetivo de gerir o serviço de interesse comum da Região Metropolitana de Florianópolis, mediante a celebração de convênios com os municípios.
O fato contundente é que a Suderf convocou os prefeitos à assinatura do convênio em um momento no qual apenas se realizava a primeira reunião do Coderf (Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Florianópolis), do qual faz parte o Colégio de Prefeitos. Mas o ponto nevrálgico do debate, que desacelerou o processo, foi a proposta do estado de adquirir competências – normalmente municipais – de arrecadação mediante cobrança de multas e estacionamento, fato que, aliado à incerteza no horizonte dos investimentos estaduais e federais gerou reações negativas por parte das prefeituras em relação às ações do governo. O fato é que os municípios esperavam investimentos em novos terminais de integração e em corredores exclusivos.
No final de 2018, o então governador em exercício Eduardo Pinho Moreira (abril a dezembro de 2018) – que substituiu Raimundo Colombo, que deixou o governo para disputar as eleições – retirou o projeto de lei do convenio interfederativo da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, bloqueando um processo que havia avançado significativamente. A próxima etapa já seria a da licitação do sistema, bem como a promoção de uma Parceria Público Privada para viabilizar os novos terminais de integração – 2 novos terminais na área continental –, assim que o convenio passasse pelas câmaras municipais. Assim, houve uma desaceleração no momento em que os necessários ajustes interinstitucionais já haviam avançado, isto é, o momento mais oportuno para o aprofundamento do processo. Finalmente, no Governo Carlos Moisés da Silva, (2018-atual), tem havido uma perda de centralidade da questão metropolitana, com todos os processos ocorrendo sem grande ação deliberada das partes interessadas. Inclusive, a Suderf, que estava entre as autarquias que seriam extintas pelo governo, só não foi totalmente desmontada devido a ações de convencimento de parte da sociedade civil e de técnicos de carreira que contribuíram, desde o início, para a sua construção.
O CONSERVADORISMO DOS NOVOS PROJETOS PARA A MOBILIDADE URBANA REGIONAL
Quando se fala em conservadorismo no planejamento da mobilidade, um dos primeiros aspectos que devem ser considerados é a falta de diretrizes e capacidades, no planejamento, para a integração entre uso do solo e transportes; a geração de emprego e renda em espaços periféricos; o estimulo aos usos mistos do solo e; a implantação de novas tecnologias e infraestruturas mistas de transporte. Tais temas têm sido debatidos, nos últimos anos, como sendo objetivos importantes que deveriam ser almejados na Região Metropolitana de Florianópolis. Dentre esses temas, considerando as dificuldades políticas de se manejar a questão da terra urbana na região, acabou por destacar-se o objetivo de implantação de um Bus Rapid Transit na região. Este, no entanto, foi se esvaindo na medida em que as perspectivas de financiamento e de apoio federal se dissolveram com o Golpe de Estado de 2016 e com a subida ao poder de um governo cujo mote central na área econômica é o corte de “gastos desnecessários”. Assim, objetivos formulados entre os anos de 2014 e 2015 foram revistos visando à menor necessidade possível de recursos.
Dentro dessa reprogramação, o atual projeto de integração metropolitana do transporte público da RMF visa manter as zonas tarifárias do antigo sistema intermunicipal, na área continental, bem como não interferir no sistema licitado em 2014, em Florianópolis, ao qual se integrará apenas fisicamente. Ressalta-se que há receios entre as operadoras de transporte público de Florianópolis com relação a uma eventual opção por uma tarifa única metropolitana, pois os custos das linhas de baixo IPK e baixo IR da área continental – na medida em que já não se fala em uma política de subsídios –, deverão ser arcadas por todo o sistema.
Vale ressaltar que no atual projeto não se considera a implantação de corredores exclusivos, jogando por terra a concepção do BRT, formulada anteriormente. Assim, se objetiva a construção de dois terminais na parte continental da RMF – embora se cogite efetuar essa integração sem nenhum novo terminal –, para os quais convergiriam linhas alimentadoras dos municípios continentais da região. Um dos terminais se localizaria na divisa de Biguaçu e São José e outro na divisa de Palhoça com São José, em função dos custos dos terrenos nas áreas mais centrais desses municípios. Como se pode observar, a questão do financiamento e das decisões em termos de investimento são essenciais, mas esta, por seu turno, passa por tomadas de decisão que são essencialmente políticas. Diversos exemplos nos mostram que, para os capitais catarinenses de conjunto – os quais modulam a tomada de decisão política –, a mobilidade urbana na Região Metropolitana de Florianópolis não se conforma enquanto uma pauta prioritária de financiamento e investimento, ao contrário do que se aparenta.
Um desses exemplos remete à operação de crédito solicitada ao BNDES em 2017 (PL 148/2017), na qual o governo do estado negociou R$ 1 bilhão e 500 milhões para infraestruturas no estado. O projeto de lei foi enviado para apreciação da ALESC, sugerindo a divisão dos recursos para: 1) Investimentos de R$ 700 milhões em rodovias, com o objetivo de finalizar as obras do Pacto por Santa Catarina, constituídas de rodovias e trechos rodoviários dispersas por todo o estado; 2) Viabilizar o FUNDAM 2 (Fundo Estadual de Apoio aos Municípios), fundo que repassa recursos do estado para os municípios e; 3) R$ 300 milhões para o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável na RMF e para a Ponte Hercílio Luz. A falta de prioridade se nota na recomendação da casa, de diluir os recursos que seriam direcionados à mobilidade urbana regional, no FUNDAM e nas rodovias.
Esses e outros exemplos demonstram que o interesse no planejamento da mobilidade urbana e em sua institucionalidade só ocorrem de modo mais contundente se a qualidade da força de trabalho, de fato, é um processo essencial para a reprodução do capital de uma determinada sociedade. A questão da mobilidade urbana, bem como outros aspectos ligados à reprodução social, como educação, saúde, lazer, acesso a equipamentos culturais e de desporto, entre outras, são uma variável dos próprios padrões de desenvolvimento de uma determinada sociedade.
BIBLIOGRAFIA
JARAMILLO, Samuel. Crisis de los medios de consumo colectivo y capitalismo periférico. Desarrollo y Sociedad. 1981, p.127-145.
MACKINNON, Danny; SHAW, Jon. Devolution as process: institutional structures, state personnel and transport policy in the United Kingdom. Space and Polity, 2010, vol.14, no. 3, p. 271-287.
RANGEL, Ignácio. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
VAINER, Carlos B. Planejamento territorial e projeto nacional: os desafios da fragmentação. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. 2007, vol.9, no.1, p. 09-23.
Dr. Rodrigo Giraldi Cocco
Pós-Doutorando CNPq, bolsista PDJ.
UFSC.