Notas sobre a China e os investimentos externos no Brasil

28/11/2019 13:00

Com o avanço das políticas públicas de redução da participação do Estado na década de 1990, o Brasil passou por uma série de leilões de privatização e/ou concessões, nestes leilões, setores como bancários, energético e transporte encontravam-se como os mais expressivos.

 

Considerando uma década de abertura econômica e inserção do capital externo na economia brasileira, o Brasil passa a receber um aumento substancial de IED por via de fusões e aquisições. Chegada a década de 2000, com a entrada do governo de Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, a economia brasileira começa a passar por uma série de transformações no âmbito social e econômico, não somente interno como também externo, colaborando para o aumento do IED no país dada a segurança política e o crescimento econômico nacional.

 

Neste cenário de crescimento econômico positivo, a China torna-se um dos principais parceiros comerciais do Brasil, importando elevada quantidade de commodities e aumentando por sua vez seu fluxo de investimentos no país.

 

Setores como energético e metais no ano de 2005 encontram-se como os mais expressivos deste tipo de investimento, somando juntos um total de 670 milhões de dólares. Em 2009 o setor de metais, muito pela compra de parte da Vale pela CIC e investimento da WISCO em greenfield, somam juntas um total de 900 milhões de dólares em investimento chinês.

 

Durante o governo Lula o setor energético e metal foram os mais expressivos, no que diz respeito ao fluxo de capital externo chinês no Brasil, somando um total de 17 bilhões de dólares em investimentos incluindo setores como transporte, financeiro e imobiliário.

 

Passado o governo Lula e a entrada da presidenta Dilma Rousseff, temos o aparecimento de novos setores na pauto de investimentos chineses no país, como: químico, logística e tecnológico, os quais passam a também fazer parte deste leque de frentes de investimentos no Brasil pela China com um total aglomerado entre os anos 2011-2016 (ano do golpe sofrido pela presidenta) um total de 36 bilhões de dólares elevado principalmente pelo setor energético com um acumulado de 26 bilhões de dólares entre os mesmos anos.

 

Passado o ano do golpe (2016) os investimentos chineses se concentram em três principais frentes: energia, agricultura e transporte somando um total de 10 bilhões de dólares, destaque para o setor energético com um total acumulado entre os anos de 2017 -2018 de 6 bilhões de dólares.

 

No ano de 2019, que ainda não se encerrou, temos um total de 1,6 bilhões de dólares destaque para o setor de transportes com 680 milhões acumulados 100 milhões a menos que o setor energético 780 milhões investidos pela China General Nuclear na geração e compra das Usinas eólica e solar na região Nordeste do país. Cabe também ressaltar que os investimentos chineses no setor energético brasileiro principalmente no segundo mandato do governo Dilma, foi barrado pela presidenta na busca de manter o setor em sua maioria nacionalizado.

 

Em âmbito geral entre os anos de 2005-2019 temos um total de 65 bilhões de dólares investidos pela China no Brasil, o setor energético é de longe o que possui o maior acumulo de investimentos, seguido por metais e transportes como apresenta o gráfico a seguir:

 

Gráfico 1 – Investimento estrangeiro chinês por setor no Brasil (2005 – 2019)

Fonte: AEI, 2019. Org: HAMADA, G.K.F. 2019

Os setores no Brasil com maior montante de investimento estrangeiro chinês são: energético, metais e transporte entre os anos de 2004 – 2019; O primeiro (energético) acumula um total de 47, 3 bilhões de dólares; Metais 4,8 US$ bilhões; Transporte 4 US$ bilhões; também o setor da agricultura com 3,2 US$ bilhões.

 

Cabe ressaltar, que a retomada da proximidade política com os Estados Unidos pelo atual presidente Jair Messias Bolsonaro, assim como a instabilidade política e econômica interna, pode influenciar diretamente nos fluxos não somente de IED em greenfields ou fusões e aquisições, como também nas exportações e importações em alguns setores da economia brasileira dada a prioridade (submissão) do Brasil no atual momento político do país com os EUA.

Tags: ChinaComércio ExteriorGlobalizaçãoIEDInvestimento Externo DiretoReestruturação econômicaRelações internacionais

Especial governo Lula da Silva: o lapso de uma política externa independente

25/05/2017 13:00

O governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) inaugurou um período de ascensão internacional do país enquanto potência emergente. Essa estratégia foi pautada na diversificação de parceiros comerciais e na ampliação de novas coalizões políticas, visando influir na arena de decisões em nível global. Por outro lado, foram direcionados esforços para ampliação da cooperação entre os países sul-americanos, com a consolidação de novas organizações internacionais de integração regional, que ampliaram as possibilidades de consenso entre os países da região, no que tange várias temáticas.

 

Outras mudanças na política externa tornaram-se evidentes, uma vez que se tornou mais ativa e altiva e inaugurou um trajeto em busca de projeção internacional. Para tanto, além de tornar-se credor do FMI, a diplomacia brasileira passou a intervir em variados fóruns internacionais e em contenções entre diversos países, realizando um grande esforço para conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).

 

O país voltou a colaborar em missões de paz sobre incumbência da ONU, feito que não ocorria desde 1947 na missão desenvolvida na região dos Bálcãs (abarcava Grécia, Albânia, Bulgária e ex-Iugoslávia), em que o país ficou encarregado de monitorar as fronteiras e auxiliar os refugiados. Para tanto, no ano de 2004, o governo brasileiro encaminhou tropas para missões de paz no Haiti, na operação Minustah; já em 2011 participou da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil). Tal conduta repercutiu nos anos seguintes na indicação do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que comandou as tropas brasileiras no Haiti, para chefiar a missão Monusco, na República Democrática do Congo, em 2013 e, na designação do tenente coronel de artilharia Ivo Werneck para compor a equipe de planejamento da Minusa, uma Missão de Estabilização Multidimensional Integrada na República Centro-Africana em 2014.

 

Vale lembrar que, no período do governo Fernando Henrique Cardoso a Política Externa apresentou enquanto foco a busca por credibilidade, cujo objetivo foi ampliar a cooperação para criação de normas internacionais, desta maneira a autonomia seria conquistada de fora para dentro [i]. Nesse sentido, havia uma tentativa de “autonomia por participação” que seria garantida pela simples presença brasileira nos regimes internacionais, que ocasionalmente asseguraria ao país influenciar na (re)elaboração das normas existentes [ii].

 

Por outro lado, no decorrer do governo Lula passou-se a ter o entendimento de que não bastava participar dos organismos internacionais, mas era necessário também uma atuação ativa na política externa, que possibilitasse alternativas para resistir às imposições de decisões que muitas vezes resultam danosas ao país. Desta maneira, buscou-se uma “autonomia pela diversificação”, isto é, a ampliação das coalizões políticas e comerciais com países que compartilham de interesses semelhantes, visando ampliar o poder de barganha nas negociações e reduzir a dependência do comércio exterior centralizado no mercado estadunidense [iii].

 

Nessa perspectiva, houve o fortalecimento do Itamaraty, a ampliação do número de embaixadas, principalmente na África, assim como em outros países que o comércio exterior ainda apresentava-se pouco relevante. Ademais, consolidou-se uma “diplomacia presidencialista” intensiva, consubstanciada na figura do presidente Luís Inácio Lula da Silva, “o cara” na expressão do presidente estadunidense Barack Obama [iv].

 

A frequência e destino das viagens presidenciais, um indicador importante para analisar a diplomacia presidencial, ganharam dimensões importantes, como pode-se verificar na Figura 01:

As viagens presidências no período do governo Lula da Silva em relação ao seu sucessor foram 110% superiores. As visitas ocorreram com maior intensidade em todas as regiões, elas cresceram 59% para a Améri­ca do Sul, para a América do Norte em 71% e, para a Europa em 74%. Ademais, houve um esforço para ampliação das relações com regiões periféricas, negligenciadas pelo antigo governo, resultando no aumento de viagens para América Central e Caribe, em 480%, África, em 750% e, Oriente Médio antes não visitado [v].

 

A concomitante aproximação política e econômica entre os países da região Sul-Sul influiu na redefinição dos fluxos de comércio internacional. Fato que resultou, consequentemente, na ampliação de um espaço econômico de trocas, que até certo nível, é contraditório às políticas globalizantes. Ora, a ampliação das relações comerciais e de cooperação sul-sul, a coalizão dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e a institucionalização de organizações internacionais de integração regional, como foi o caso da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), contrapõem-se aos interesses globais hegemônicos e, até certa medida, ampliam as disputas geopolíticas.

 

Essa dinâmica, inaugurada no decorrer do governo Lula prosseguiu no decorrer do primeiro mandato da presidente reeleita Dilma W. Rousseff (2011-2014), que preservou as mesmas orientações da política externa do seu antecessor, ainda que com característica mais discreta e, aparentemente menor ímpeto por conquistar projeção internacional [vi]. Ou seja, podemos afirmar que houve “contenção na continuidade da política externa” mantendo-se os objetivos, porém despendendo menores esforços, uma política menos propositiva e ousada que seu precursor [vii].

 

Esta postura mais comedida refletiu na redução de viagens da presidente Dilma Rousseff para cumprir agendas de interesse bilateral ou multilateral (Figura 01). Essas foram 30% a menos que as ocorridas no primeiro mandato do presidente Lula e, aproximadamente 50% das realizadas no segundo mandato do petista [viii]. Além disso, ocorreu a redução da absorção do quadro de diplomatas de 100 candidatos/ano, mantido no último mandato do presidente Lula da Silva, para somente 18 no ano de 2014. Assim como, a redução do orçamento do Itamaraty, ainda que essa se justifique devido a descentralização do papel do organismo enquanto formulador de políticas externas, compensado com a ampliação da autonomia dos ministérios, para que suas próprias secretarias de relações exteriores atuem.

 

Nessa conjuntura o primeiro mandado da presidenta Dilma Rousseffe corresponde a um período de declínio da inserção nacional do país, após um período de ascensão internacional do país enquanto potência emergente no governo Lula da Silva [ix]. Essas premissas são pautadas na redução de investimentos, na ausência de política destinada ao comércio exterior, no encolhimento da influência do país na arena internacional, em que debate-se e decidem-se normas que influem no comércio exterior. Essa situação tornou-se mais evidente no segundo mandato da presidenta Dilma, cuja dificuldade para manter a governabilidade nesse momento requereu o direcionamento de esforços na tentativa de administrar a crise política doméstica, que desencadeou no processo de impeachment.

 

Com a ascensão de Michel Temer de vice à "presidente", em maio de 2016, uma nova política externa foi sinalizada como se pode constatar no documento elaborado pelo mesmo “Uma diplomacia presidencial a serviço do Brasil” [x], o governo buscaria por uma postura pragmática à retomada da confiança no país. Para tanto, ainda de acordo com documento, o Brasil deveria distanciar-se de “visões de mundo enviesadas”, isto é, ideologias que privilegiavam um conjunto de países em detrimento de outros. Uma proposta de política externa, no mínimo irônica, ou melhor, demagógica. Uma vez que, buscou reduzir as “influencias ideológicas” no Itamaraty, no entanto indicou-se para o cargo, que nos últimos 15 anos foi ocupado por profissionais de carreira, o senador Jose Serra do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), um político que possui uma orientação ideológica claramente americanista, conservadora e sem rumo certo.

 

Essa nomeação resultaria infeliz, devido a um encadeamento de discordâncias entre as posturas de Serra e Temer em relação a condução da política externa brasileira, que se refletem em temas como: a redução da prioridade dada a América do Sul; na participação do Brasil na disputa por um acento no Conselho de Segurança da ONU; na condução da política externa com Venezuela e Israel, onde as relações são delicadas, entre outras e que contribuíram para que o ministro apresentasse seu pedido de demissão do cargo.

 

Consecutivamente o cargo passou a ser ocupado pelo também tucano Aloysio Nunes, nome que não gerou boas expectativas, seja por seu temperamento que parece não condizente com o cargo [xi], seja pelas investigações que o mesmo responde no STF. Sendo, necessário tempo para avaliar a política externa do período do governo Temer, no entanto, parece seguro afirmar que, a retomada do status do Itamaraty, enquanto ministério-chave das relações internacionais, não passará de uma expectativa frustrada.

 

Por outro lado, a popularidade em queda livre do governo, que nos primeiros meses de mandato era de 14%, conquistando o preocupante título de pior popularidade no ranking das Américas (segundo consultoria da Mitofsky) [xii], para 10% no ano de 2017 [xiii], o que demonstra a discordância dos brasileiros em relação a implementação do programa de governo “Uma Ponte para o Futuro”, torna a política externa, cada vez mais, estratégica para conquistar legitimidade internacional, para um "presidente" impopular e desmoralizado no cenário nacional.

 
 
 

[i] Vide: LIMA, M. R. Soares de. “A Política Externa Brasileira e os Desafios da Cooperação Sul-Sul”. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 48, no 1, p. 2005, p. 24-59

 

[ii] Vide: VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, Marcelo Fernandes de. A política externa brasileira na era FHC: um exercício de autonomia pela integração. Interthesis, Florianópolis, v. 3, n. 3, 2005, p. 1-44.

 

[iii] Vide: VIGEVANI, Tullo e CEPALUNI, Gabriel. “A Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação”. Contexto Internacional, vol. 29, nº 2, 2007, p. 273-335.

 

[iv] Vide: GARCIA, M. A. A política externa brasileira. In: JAKOBSEN, K. A nova política externa. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2010

 

[v] Vide: MILANI, C. R. S. et al., Atlas da política externa brasileira. 1º ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; Rio de Janeiro: EDUerj, 2014

 

[vi] Vide: ALMEIDA, P. R. de. Política externa e diplomacia partidária no Brasil atual. Revista Interação, v. 6, n. 6, jan/jun, 2014, p.8-27.

 

[vii]Vide: CORNETET, João Marcelo C. A Política Externa de Dilma Rousseff: Contenção na Continuidade. Conjuntura Austral, v. 5, n. 24, 2014, p. 111-150

 

[viii] Vide: CORNETET, João Marcelo C. A Política Externa de Dilma Rousseff: Contenção na Continuidade. Conjuntura Austral, v. 5, n. 24, 2014, p. 111-150

 

[ix] Vide: CERVO, Amado Luiz; LESSA, Antônio Carlos. O declínio: inserção internacional do Brasil (2011-2014). Revista Brasileira de Política Internacional. v. 57, n. 2, p. 133-151, 2014.

 

[x] Vide: TEMER, Michel. Uma diplomacia presidencial a serviço do Brasil. O Estado de São Paulo. São Paulo 25/12/2016. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/529215>.

 

[xi] Vide: GIELOW, Igor. Escolha para o cargo de chanceler traz alívio e preocupação entre diplomatas. Folha de São Paulo. São Paulo. 3/3/2017.

 

[xii]Vide: Barrucho, Luis. Com 14% de aprovação, Temer tem segunda pior popularidade em ranking das Américas. BBC. Brasil. 5/10/ 2016

 

[xiii] Vide: MURAKAWA, Fabio; AGOSTINE, Cristiane. Avaliação positiva do governo Temer cai para 10,3%, diz CNT/MDA. Jornal Valor Econômico. Brasil. 15/02/2017

Tags: América LatinaComércio ExteriorDesenvolvimentoEconomiaGeografiaGeografia EconômicaGeopolíticaGlobalizaçãoGolpe de EstadoGoverno LulaPolítica externaRelações internacionais

Abertura, concorrência e renovação das concessões ferroviárias: avanços e retrocessos recentes

27/04/2017 13:00

Passados quase duas décadas das concessões ferroviárias brasileiras é possível observar que o discurso do governo do período de que a atuação de empresas privadas resolveria os problemas decorrentes da falta de investimento da malha nacional, como: os dormentes danificados, lastros contaminados, trilhos gastos e desalinhados, sinalização deficiente, pátios sem equipamentos e operação onerosa, não se concretizaram. As concessionárias priorizaram corredores de exportação específicos e consequentemente desativaram e subutilizaram trechos de acordo com o interesse das mesmas e os produtos que o mercado externo buscava, sem uma preocupação com o mercado interno e a integração produtiva nacional.

 

Em uma tentativa de alterar alguns dos problemas identificados, em 2012, o Governo Dilma, através do Programa de Investimento em Logística (PIL) propôs a implantação de um novo modelo de concessão com a separação do fornecimento da infraestrutura ferroviária (vias, pátios e sistemas de controle de tráfego) e o serviço de operação, principalmente em função das características dos novos projetos. A Ferrovia Norte-Sul, por exemplo, é uma via férrea troncal que ligará o norte do país ao sudeste, e quando concluída, também ao sul. Por integrar todo o país não é interessante que ela seja concedida no modelo vertical para a atuação de uma única empresa, ao contrário o ideal é que ela seja integrada a malha nacional e diferentes operadoras tenham o acesso a mesma.

 

Trata-se de um processo de desverticalização do transporte ferroviário, ou seja, separação entre a infraestrutura e a operação. Este modelo de separação vertical previsto pelo PIL é próximo ao que foi adotado na União Europeia, na década de 1990. Ela definiu a separação vertical como forma de introduzir a concorrência nas ferrovias e melhorar a qualidade dos serviços. No caso brasileiro, a Valec forneceria a infraestrutura, faria a negociação de preços e a venda da capacidade da via para as transportadoras e operadoras de serviço. Caberia a empresa pública fomentar as operações ferroviárias através do aumento da capacidade no subsistema federal e promover a interoperabilidade da malha, de modo a não deixar malha com capacidade ociosa e ampliar a competição no setor.

 

A mudança do modelo de concessão estabeleceu novos desafios para a gestão do modal ferroviário nacional, ao mesmo tempo em que surgiram vários questionamentos quanto operacionalidade e às vantagens e desvantagens do modelo desverticalizado para a realidade brasileira. A principal vantagem seria criar a concorrência no serviço, eliminar possíveis discriminação de usuários pelo prestador de serviço e a possibilidade de diminuição do custo de capital associados as vias férreas. No Brasil isto tem um caráter a mais tendo em vista que os maiores operadores ferroviários são empresas ligadas ao setor produtivo e que possuem seus próprios produtos para transportar. Assim, além de aumentar a concorrência dentro do modal a alteração também permitirá o acesso de diferentes produtores ao modal, não somente de commodities, mas também de carga geral por meio da expansão do uso de contêineres. A possibilidade de empresas prestadoras de serviços de transporte ou usuários dependentes poderem transportar cargas pela malha diminuirá os custos e o tempo de circulação, permitindo maior fluidez entre as diferentes regiões. Os usuários da malha em Santa Catarina, Pernambuco e Minas Gerais, por exemplo, poderiam ser estimulados a usar a ferrovia. Com um maior número de operadores a produtividade dos trechos seria maior, assim como o retorno social, devido a retirada de caminhões das estradas.

 

Para este modelo funcionar é necessário uma série de adequações técnicas, uma vez que um operador não poderá mudar as especificidades do material rodante para se adequar a diferentes infraestruturas ferroviárias, sistemas de sinalização e comunicação. Atualmente existe uma incompatibilidade entre os sistemas das concessionárias no Brasil.

 

À despeito dos problemas técnicos e normativos, aqui apenas pincelados, para aplicação de referido modelo de operação ferroviário no Brasil, ele foi um avanço pois iniciou a discussão do monopólio e abriu o cadastro para Operadores Ferroviários Independentes (OFI) usar a malha férrea, que vale lembrar, é pública. Contudo, ainda durante o processo de debate e início da abertura, a desaceleração da economia brasileira no ano de 2015 travou o processo de investimentos em obras de infraestruturas e o governo do período sinalizou a possibilidade de prorrogação dos contratos das atuais concessionárias.

 

A instauração do Governo Temer alterou significativamente pontos importantes para a melhoria do sistema ferroviário nacional. De modo que passados apenas cinco anos do início da discussão no Brasil, a qual tampouco se tratou de um enfrentamento direto dos problemas das concessões ferroviárias, o país é confrontado com um retrocesso à política neoliberal da década de 1990. Apesar de prever a disponibilização de capacidade mínima de transporte para terceiros, quando couber, e a relicitação do objeto de contrato em caso de descumprimento de disposições ou incapacidade financeira, o atual governo retoma o discurso do final do século XX e está em vias de retroagir e cometer exatamente os mesmos acordos de interesse com grupos específicos, os quais são totalmente contrários ao interesse nacional.

 

O processo de alteração iniciou com a promulgação da Lei nº 13.334 de 13 setembro de 2016 a qual cria o Programa de Parcerias de Investimento (PPI), projeto do atual governo para ampliar os investimentos, via adoção de um modelo de concessão que atraia mais a iniciativa privada e novas privatizações, com a justificativa de que isto irá tirar o país da crise.

 

No que se refere respectivamente ao modal ferroviário nacional o PPI definirá os projetos ferroviários prioritários e o modelo de concessão e contratos com a iniciativa privada. Dentre os objetivos do PPI está a “assegurar a estabilidade e a segurança jurídica, com a garantia da mínima intervenção nos negócios e investimentos” e “fortalecer o papel regulador do Estado e a autonomia das entidades estatais de regulação”, portanto, tem-se que não haverá mudança na liberdade de atuação das concessionárias e uma fiscalização rigorosa, por parte da ANTT, no sentido de fazer cumprir os acordos e responsabilidades previstos nos contratos. O programa incluiu três obras ferroviárias, sendo que duas já estão em execução, a saber: o trecho entre Palmas e Estrela D’Oeste da EF-151 e entre Ilhéus e Caetité da EF-334 (Ferrovia de Integração Oeste-Leste). E o projeto a ser executado a EF-170 (Ferrogrão) que neste programa aparece com o traçado de Sinop/MT até Mirituba/PA ao invés de Lucas do Rio Verde/MT a Mirituba.

 

O golpe efetivo sobre o modal ferroviário foi a promulgação da Medida provisória nº752, de 24 de novembro de 2016. Esta estabelece as diretrizes para a prorrogação e relicitação dos contratos de concessão rodoviárias, ferroviários e aeroportuárias. De modo que, as atuais concessionárias poderão renovar o contrato de concessão por igual período ao contrato anterior, por meio da inclusão de investimentos não previstos na concessão vigente. A medida define que a prorrogação seja condiciona pela prestação de serviço adequada, por parte da concessionária. O que é uma contradição tendo em vista que este critério eliminaria parte das atuais concessionárias, devido ao abandono de ramais ferroviários e também descumprimento das metas, como pode ser observado pelo número de processos no Ministério Público e outros órgãos contra as mesmas.

 

Ao mesmo tempo, a prorrogação das atuais concessionárias dificultará o uso da malha por terceiros. As atuais operadoras controlam as vias de acesso aos principais portos, estes trechos possuem pequena capacidade ociosa e alguns ainda tem restrições de horários e velocidade por cortarem áreas urbanas. Estas especificidades limitará a atuação de operadores independentes e a capacidade de tráfego dos mesmos. Sem uma definição clara de quais serão os tipos de investimentos exigidos das concessionárias para a prorrogação e com os cortes nos investimentos públicos tem-se que a capacidade de tráfego das malhas não se alterará de modo a absorver o aumento da demanda do setor produtivo e a demanda de novos operadores.

 

Outro artigo de respectiva medida provisória permite que a entidade competente desvincule ramais ferroviários propondo parâmetros diferenciados para cada contrato. De fato, este item permite que as atuais concessionárias realizem a prorrogação somente dos trechos com maior produtividade e o restante seja negligenciado com o respaldo dos entes públicos. A Rumo, por exemplo, manifestou interesse de prorrogar a concessão somente da malha paulista, que liga Rondonópolis/MT a Santos/SP, por ser o trecho com maior produtividade de toda a sua malha. O restante da malha que já acumula prejuízos, haja vista, a falta de investimento da América Latina Logística, durante toda a concessão, será desassistida e os usuários da mesma serão obrigados a migrar para as rodovias.

 

Um último ponto igualmente representativo do direcionamento da política de transporte ferroviário de modo a atender o interesse das empresas controladoras das concessionárias, sem nenhuma preocupação com o provimento de um sistema ferroviário de qualidade para o país, é a definição de que a União está autorizada a compensar haveres e deverem de natureza não tributária com as concessionárias, inclusive pela devolução de trechos ferroviários, e estes valores poderão ser utilizados para o investimento, diretamente pelos respectivos concessionários. Este artigo faz referência direta ao caso da Ferrovia Centro Atlântica. Esta concessionária, controlada pela Vale, recebeu autorização da ANTT, através da Resolução 4.131 de 03 de julho de 2013, a proceder a devolução de quase metade da malha originalmente concedida. Ao total seriam 3.989 km de vias férreas devolvidas.

A resolução definiu que a ficaria assegurada à FCA uma capacidade operacional, equivalente a entregue na devolução, nos novos trechos ferroviários que estavam previstos para construção no Programa de Investimento em Logística (PIL). Segundo o documento a realização de investimentos pela concessionária seria mais benéfica para o sistema ferroviário nacional do que o pagamento em espécie. Todavia, os contratos das concessões já constam a necessidade de investimentos, apesar de não especificar quais sejam, sendo assim, o dinheiro seria utilizado para fazer obras de manutenção e de melhoria na malha que já são de responsabilidade da mesma.

 

Em desacordo o Ministério Público entendeu a resolução como um privilégio dos interesses privados em detrimento do patrimônio público e resolveu por determinar que a ANTT revogasse toda a Resolução 4.131[1]. Por se tratar de trechos economicamente viáveis o MPF considerou que se tratava de destruição pura e simples das linhas férreas, com imensos danos aos cofres públicos e ao patrimônio cultural. Esse caso elucida as recorrentes falhas e omissões da ANTT em fiscalizar e fazer cumprir as obrigações contratuais pelas concessionárias ou ao contrário ao fazer prevalecer o interesse das mesmas. Portanto, o Art. 24 da Medida Provisória legitima um crime contra o patrimônio público.

 

A Medida Provisória 752 foi prorrogada até maio e segue em tramitação em regime de urgência na Câmara dos Deputados para se tornar lei. Novas emendas podem ser inseridas, mas apenas com os artigos, aqui apontados, do texto base fica claro os objetivos de manutenção de um modelo de monopólio que não fomenta a expansão do modal ferroviário no Brasil, tampouco contribui para o desenvolvimento regional e integração nacional.

[1] Inicialmente a ANTT alterou o texto da Resolução nº4131 com a Resolução nº 4160, de 26 de agosto de 2013. Em 2015 foi realizado uma nova mudança com a resolução nº 4750, de 18 de junho de 2015 que substituiu uma das planilhas de obras a serem executadas e em 2016 foi revogado os dispositivos que previam a desativação de trechos economicamente viáveis, através da resolução nº5101, de 16 de maio de 2016.

Tags: CirculaçãoComércio ExteriorDesenvolvimentoEspoliaçãoEstradas de FerroFerroviasGeopolíticaGolpe de EstadoLogísticaPortosPrivatizaçõesReestruturação econômicaTransporte de cargas