A moradia e o saneamento como peças fundamentais para a sobrevivência frente à Covid-19

03/04/2020 13:00

Até a data de hoje, 30 de março de 2020, o Covid-19 tem infectado a mais de 634 835 pessoas em 191 países do mundo segundo o Observatório Global da Organização Mundial da Saúde. A tendência aponta que nos próximos dias estas cifras vão crescer vertiginosamente. Países europeus com economias consolidadas como à Itália alcança já 10.779 mortes (CSSE, 2020). Na Espanha, os dados apontam mais de 7.340 mortes segundo o Ministério de Saúde da Espanha. Seguem nesse caminho os Estados Unidos com 143.055 infectados (CSSE, 2020). Estamos falando então, de um tipo de disseminação global nunca vista de um vírus altamente contagioso que atinge com rapidez, e num fluxo contínuo, a nós os humanos, que somos a unidade mais importante do sistema econômico.

 

Nesse mundo totalmente globalizado, predominantemente urbano e interconectado pelas redes de transporte e comunicações, tudo se encontra unido por vínculos intrínsecos, físicos e virtuais, que atravessam as diversas escalas territoriais com muita rapidez. Esses vínculos embora pareçam inexistentes, formam parte de nossas vidas e de nosso dia a dia.

 

A circulação das pessoas, seja por trabalho ou lazer foi um fator altamente incentivado pelos governos com economias crescentes e foi primordial para o desenvolvimento de economias consolidadas. Hoje pelo contrário, frear os fluxos de pessoas entre os territórios nas diferentes escalas geográficas e bloquear as relações físicas dos indivíduos, em outras palavras ¨ficar em casa¨ é altamente essencial para frear a disseminação do vírus.

 

Então verificamos que a moradia é a peça fundamental para conter a crise sanitária, bem como as boas condições da mesma. Que todas as famílias tenham uma moradia bem servida pela rede sanitária é de vital importância hoje mais do que nunca.

 

No passado, os diferentes governos implementaram estratégias políticas de acesso a habitação, ao saneamento, a saúde, a educação etc. com o proposito de melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes. Nos países subdesenvolvidos como o Brasil, a preocupação por otimizar as relações económicas e políticas de grupos hegemônicos tem deixado mal atendida a população carente de moradia e tem levado ao colapso os serviços de consumo coletivo. Existe um “empresariamento da política urbana” (LENCIONI, 2017), e não, uma política urbana que conta com a participação empresarial. Esses modos são impulsionados pelas forças neoliberais que reforçam o caráter capitalista da lógica econômica de mercado, no qual a moradia é comercializada como um produto e não como um direito básico do homem.

 

Com os acontecimentos decorridos nesses últimos anos no Brasil, como o Golpe de Estado de maio de 2016, onde se destituiu do cargo à ex-presidente Dilma Rousseff, se restringiram programas sociais fundamentais, como o Bolsa Família e o programa de habitação de interesse social Minha Casa Minha Vida que, até agosto de 2016, entregou 2.986.389 unidades habitacionais para famílias carentes de moradia (HILDEBRANDT, 2018). Fica, portanto, ainda mais evidente o crescimento do número de pessoas em situação de pobreza no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estadística (IBGE), as pessoas em situação de pobreza extrema no ano 2019 alcançaram os 13,5 milhões, cifra nunca antes vista no país.

 

Nas periferias das cidades brasileiras e nas favelas, as pessoas convivem em situações sub-humanas, em moradias sem água nem esgoto, em comunidades sem coleta de lixo ou sem sistema de coleta de água da chuva. Por outro lado, a alta densidade de seres humanos por metro quadrado, associada a um saneamento básico precário, potencializa a dispersão de doenças infecciosas, como diarreia, pneumonia e a tuberculose, quadros muitas vezes atrelados ao ataque de vírus, bactérias e fungos. Então, podemos imaginar que a consequência da chegada do Covid-19 para essas pessoas será, em muitos casos, fatal, pois elas estão submersas numa crise sanitária crônica.

 

Favela da Linha, localizada entre dois empreendimentos imobiliários no Oeste de São Paulo.

Fotografia: Lalo de Almeida para a Folha de São Paulo. 19 de agosto de 2019.

As condições e as circunstâncias das nossas moradias são uma questão importante para frear a corrente de infecções pelo Covid-19. O confinamento social numa casa ou apartamento abastecido com os serviços básicos faz toda a diferença. Possibilita os bons hábitos de higiene, propicia o confinamento de um possível infectado o controle e a higienização das pessoas e coisas que ingressam nela. É, por isso, que os governos Europeus confiam que os contágios pelo Covid-19 serão freados em 30 dias de estritos confinamentos, pois a maior parte da sua população conta com as condições sanitárias na sua moradia, mesmo as áreas de pobreza estão abastecidas de redes de água e desague.

 

Sendo assim, não se pode replicar o mesmo sistema de confinamento usado na Ásia ou na Europa para as cidades brasileiras com grandes áreas de pobreza, pois as camadas de população pobre não contam com as condições de salubridade nas suas moradias, nem nas suas comunidades. Embora o confinamento possa ser exitoso em áreas de média ou alta renda, nas áreas de pobreza deve-se trabalhar de forma focalizada, confinando as famílias ou os grupos mais vulneráveis fora das zonas degradadas e carentes de água, tomando em consideração uma eventual realocação da população em espaços salubres e controlados pelo sistema de saúde. Contrario a isso, veremos como as transmissões se multiplicarão de forma avassaladora, prejudicando todos que formam parte da cidade, ameaçando mais do que nunca nossa participação no sistema global da economia. A ação do Estado é decisiva.

Podemos corroborar nestes dias que as nações com menores áreas de pobreza e eficientes sistemas sanitários e de saúde, são também as nações com maiores possibilidades de reagir frente a presente crise sanitária, pois as condições da moradia e das cidades como um todo são fatores relevantes para frear as infecções pelo Covid-19. Mais do que nunca, verificamos que a moradia e o saneamento são questões básicas de sobrevivência dos indivíduos e das economias mundiais.

 

Ninguém achava isto possível, mas agora é real, estamos todos nós submersos numa névoa de incertezas e dúvidas sobre o futuro. O que aconteça nos próximos dias marcará um ponto de início, uma retomada para nossas vidas, e para as economias de todos os países.

 

Margaux Hildebrandt Vera,

Arquiteta Urbanista, Doutora em Geografia, Mestre em Urbanismo, Arquitetura e História da Cidade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

 

Referencias:

HILDEBRANDT, Margaux. As dinâmicas de metropolização e a atuação dos agentes produtores do espaço urbano na área conurbada de Florianópolis. Tese de doutorado do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2018.

LENCIONI, Sandra. Metrópole, metropolização e regionalização. Consequência Editora. Rio de Janeiro 2017.

Coronavirus COVID-19 Global Cases by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) https://www.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6

World Health Organization. Situation Report 69. March, 2020.

https://www.who.int/publications-detail/infection-prevention-and-control-during-health-care-when-novel-coronavirus-(ncov)- infection-is-suspected-20200125

Tags: CidadesCOVID-19FavelaInfraestruturasSaneamento básicoUrbanização

Comentários geográficos em tempos da Covid-19

03/04/2020 13:00

Em tempos de pandemia da COVID-19 a reflexão sobre como ciências além da área da saúde podem contribuir ao esclarecimento das pessoas, se faz importante. A Geografia, ciência humana por origem e vocação possui um componente destacável na análise social do bem-estar e saúde dos grupos humanos. As relações entre natureza e sociedade caras ao estudo geográfico se expressam através da difusão de fenômenos, no caso específico, as enfermidades que podem acometer as populações.

 

Maximilien Sorre, importante geógrafo francês tendo influência sobre autores brasileiros como Josué de Castro e Milton Santos, destaca o conceito de habitat como espaço criado e organizado por uma sociedade humana, nos planos físico, biológico e social. A chamada Geografia Médica é tributária do pensamento de Max Sorre, abordando as doenças como fenômenos de determinada extensão de acordo com aspectos relacionados aos planos supracitados (físico, biológico e social).

 

A Geografia Médica, tratada com esse rótulo é datada do século XIX, com a produção de Atlas que continham mapas sobre a difusão regional de doenças e serviam para orientar obras de saneamento, bem como disciplinar a ocupação de europeus em territórios tropicais. De acordo com Ferreira (1991) o período em que os atlas específicos demostravam cartograficamente a difusão de doenças não chegou a promover um debate interdisciplinar entre a epidemiologia e a Geografia, porém foram em alguma medida úteis a um tipo específico de planejamento (sobretudo a Geografia Colonial).

 

Sorre nos anos 1940 oferece a comunidade científica uma possibilidade metodológica de interação entre a Geografia e epidemiologia, através de uma interpretação ecológica (ecologia humana) das relações entre homem e meio. Em sua obra mais importante, Les fondements de la géographie humaine o geógrafo francês apresenta o conceito de complexo patogênico. As doenças apresentariam seus complexos com origem, desenvolvimento e desintegração tendo a atividade humana como elemento central na difusão de vetores ou mesmo o elemento humano como vetor na difusão das doenças, apresentando um componente claro de associação entre a epidemiologia e a ciência humana Geografia.

 

A perspectiva dos complexos patogênicos pode incluir múltiplas determinações, desde o aspecto climático, as formações vegetais, o desmatamento e principalmente a Geografia da Circulação dos vetores humanos ou animais com a evolução dos meios de transportes. Na esteira da Geografia Médica, podemos destacar o trabalho de Josué de Castro, que escolhe a Geografia para abordagem do tema de pesquisa que perpassou sua vida: A Fome.

Com Josué de Castro, no livro a Geografia da Fome publicado em 1946 o autor além de trabalhar os conceitos de fome endêmica e epidêmica, traça um parâmetro das regiões brasileiras de acordo com a propensão ou não de serem áreas de fome, em uma forte influência da Geografia Francesa fundada com Vidal de La Blache. A linha de análise sobre propensas regiões de fome é expandida para o mundo em Geopolítica da Fome de 1951.

 
 

Os dois circuitos da economia nos países subdesenvolvidos e as possibilidades de análise em tempos de COVID-19:

 

Relembrados alguns aspectos relacionados a maneira como a Geografia pode ser relacionada ao tema de difusão de enfermidades humanas, gostaríamos de destacar outro arcabouço teórico também relevante em tempos de COVID-19. As ideias desenvolvidas por Santos (2008) presentes no livro o Espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos publicado primeiramente no final dos anos 1970.

 

Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, a saber, circuito superior e circuito inferior são resultado de uma integração dos países subdesenvolvidos ao capitalismo mundializado. Os dois circuitos não são considerados de maneira estanque, outrossim de maneira dialeticamente interligada, sendo que eles são resultado de um crescimento econômico e urbano particular (dos países subdesenvolvidos).

 

O circuito superior, amplamente definido pelo autor como o todo de atividades modernas relacionada a agropecuária, indústria e atividades de comércio e serviços que principalmente possuem disponibilidade de grande capital para investimentos e oportunidades de financiamento. O circuito superior, possui um reflexo no espaço urbano na formação de infraestruturas para a exportação, industrias, comércio atacadista e varejista

 

A modernização nos países desenvolvidos, aparece de uma maneira onde o estado favorece este circuito (superior), dotando os países subdesenvolvidos de infraestruturas como redes de energia elétrica, estradas, aeroportos de modo a favorecer o grande capital, parte das vezes internacional que além das referidas infraestruturas se beneficia da mão de obra mais barata nos países subdesenvolvidos e também de financiamentos oferecidos pelo próprio Estado, bem como das isenções de impostos. Muitas das industrias de menor tecnologia são transferidas dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos que passam a exportar matérias primas já processadas.

Fonte da Imagem: http://emetropolis.net/artigo/276?name=metropole-e-economia-urbana-na-amazonia

O livro de Milton Santos, como resultado de um esforço teórico da década de 1970 serve como ponto de partida para algumas das nossas reflexões sobre o presente, mas desde aqueles tempos demonstrava como o Estado tem agraciado o grande capital. Chega-se na discussão hodierna, onde muito se discute sobre quem pagará a conta, relacionada a quarentena da Covid-19, certamente o grande capital sofre com uma parcial paralização da economia, mas a história em diferentes países mostra que o Estado nunca deixou de estender a mão ao grande capital, inclusive arrecadando níveis de poupança junto a população mais pobre a quem sobretudo a forma de arrecadação de impostos acaba sendo bastante hostil.

 

A respeito do circuito inferior é possível afirmar, o pequeno comerciante, o pequeno prestador de serviços; ela não é penalizado apenas no momento da pandemia quando não pode realizar seu trabalho e sim na falta de acesso a financiamentos baratos, falta de serviços de saúde e educação para seus filhos e parentes mais próximos. Pois bem, a opinião pública não pode apenas em momentos de dificuldade esbravejar em favor de uma grande massa excluída, ou mal incluída na economia real.

 

O circuito inferior, aparece de uma maneira clara no livro o Espaço Dividido, com diversos exemplos em cidades na Ásia, África e América Latina: o vendedor de alimentos, tecidos, o artesão, o pedreiro, etc. O circuito inferior não é tratado exatamente como a economia do gueto, ou apenas como conjunto de atividades não modernas. Ele parte da ideia de que são trabalhadores independente, realizando atividades de circulação e provisão curta, baixos estoques e influência decisiva da mão de obra do individuo ou um pequeno grupo de pessoas com pouco capital investido em um único empreendimento econômico.

 

O circuito inferior possui baixo acesso ao crédito, tanto por parte do comerciante, quanto do prestador de serviços. Um exemplo de relação entre circuito superior e inferior é o caso de o circuito inferior abrir possibilidades de maior fracionamento da mercadoria, coisa menos acessível no varejo do circuito superior: tecidos, cigarros, frangos, etc. vendidos de maneira fracionado pelo pequeno comércio de rua ou do bairro. Assim, mercadorias produzidas no circuito superior são acessadas por pessoas que compram seus viveres através do circuito inferior.

 

Atualmente vemos uma ressignificação do circuito inferior, relacionada aos aplicativos de mobilidade, entrega de alimentos e afins. Onde o aplicativo, elemento moderno acaba se utilizando da possibilidade de pessoas a margem do mercado de trabalho transformarem veículos individuais em instrumentos de trabalho, no exemplo moderno, novamente a falta de políticas públicas abandona o trabalhador a sorte: da lógica do ganha se trabalha.

 

São muitas reportagens a mostrarem a dura realidade na quarentena dos moradores de rua, favelas, ou vendedores de alimentos em eventos esportivos, etc. Os trabalhadores precisam trabalhar, porém não podem ter suas vidas arriscadas por essa que já se aproxima a ser a maior pandemia dos tempos recentes. Enquanto isso, as ações do governo brasileiro para atender essa população são ainda tímidas do ponto de vista da distribuição de recursos.

 

Destacamos por fim que somente politicas publicas sérias de distribuição de renda, acesso a financiamento e educação vão remediar a realidade estrutural dos dois circuitos da economia dos países subdesenvolvidos. A economia do circuito inferior deve ser discutida também em momentos de crescimento econômico quando as possibilidades de resolução de problemas estruturais da sociedade brasileira são maiores.

 

VEJA MAPA INTERATIVO DA COVID-19 NO MUNDO: https://www.bing.com/covid

Referências:

FERREIRA, Marcelo Urbano. Epidemiologia e geografia:: o complexo patogênico de Max. Sorre. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p.301-309, 01 jun. 1991. Julh/set.

SANTOS, Milton. O espaco dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2008. 436 p. (Coleção Milton Santos ; 4).

SORRE, Maximilien; MEGALE, Januario Francisco. Max. Sorre: geografia. São Paulo: Atica, 1984. 192 p.

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Como enfrentar a Covid-19 sem hospital?

03/04/2020 13:00

Em meio às medidas restritivas e tentativas de retorno às atividades, como as cidades da Bacia Hidrográfica do Rio do Peixe enfrentarão a pandemia se muitas delas não têm hospital?

 
 

Se as atividades econômicas voltarem será possível atender os casos mais graves de covid-19 na região da Bacia Hidrográfica do Rio do Peixe em Santa Catarina? Diante da proposta de retomada das atividades econômicas divulgada pelo Governo do Estado no dia 26 de março de 2020 e de seu recuo para manutenção da quarentena e isolamento social na tentativa de minimizar a transmissão do vírus em Santa Catarina justificada sob termos técnicos, questionou-se sobre a infraestrutura dos municípios da região da Bacia do Rio do Peixe para lidar com a pandemia e seus casos.

 

Embora as Prefeituras tenham realizado um trabalho de acompanhamento, em conjunto com as Secretarias de Saúde, um breve cruzamento de dados entre a quantidade de leitos disponíveis nos hospitais da região e a população que habita o território pode demonstrar que a retomada das atividades nesse período crítico da pandemia pode promover uma sobrecarga no atendimento nos serviços de saúde, especialmente tendo em vista que muitas dessas cidades sequer possuem hospital.

 

Fonte: Sistema de Informações Geográficas de Santa Catarina – SIGSC. Elaborado: Alan A. Alievi, 2019.

 

A região é formada por 28 municípios que vão de pequeno à médio porte, como é característico do Estado e possui uma população total de 377.909 habitantes, segundo a estimativa do IBGE (2019). Destes 28 municípios, 20 possuem menos de 8.000 habitantes e apenas 6 deles contam com hospital público ou privado, somando 136 leitos disponíveis, de acordo com dados do CNES. Como a população de Alto Bela Vista, Calmon, Erval Velho, Ibiam, Ibicaré, Iomerê, Lacerdópolis, Macieira, Ouro, Pinheiro Preto, Piratuba, Rio das Antas, Treze Tílias e Zortéa age em casos de doenças graves? E como agirá diante dos casos de covid-19?

 

Fonte: IBGE, 2019. Cidades e Estados. Org: Diego da Luz Rocha, 2020.

 
 
 
 

A resposta para esta pergunta pode ser buscada na Geografia a partir do princípio de centralidade. De acordo com Pereira e Furtado (2011), o espaço urbano se organiza em torno de um núcleo urbano principal complementado por uma região em uma relação de codependência. Assim, o lugar central assume uma função principal ao disponibilizar mais ofertas de bens e serviços complexos, com maior diversidade. Essa posição é ocupada nessa região por cidades maiores, cujos habitantes variam entre 10.000 e 80.000, e que dispõem de maior oferta de serviços e bens.

 
 

Uma vez que estas cidades possuem um papel de núcleo dentro da geografia urbana regional, não cabe admiração ao perceber que possuem uma maior oferta de leitos hospitalares disponíveis. A cidade de Videira, por exemplo, possui sozinha quase a totalidade dos leitos gerais disponíveis na outra fração de municípios analisados. Mas a exceção à regra, nesse caso, é a cidade de Herval d’Oeste, que não possui hospital provavelmente por ser atendida por Joaçaba. Ao todo, portanto, essa parcela de municípios nucleares possui 525 leitos gerais (incluí todos os leitos existentes nos hospitais) para atender a população.

 

Considerando que a região da Bacia do Rio do Peixe possui uma população de 377.909 habitantes, seriam os 661 leitos gerais hospitalares existentes o suficiente para enfrentar a pandemia?

 

A situação fica mais delicada ao analisar o número de leitos em UTI pelo SUS.

Embora Videira, Joaçaba e Tangará tenham hospitais particulares, estas instituições não têm UTIs e encaminham os casos mais graves de diversas doenças para os leitos de UTIs dos hospitais públicos. Nos outros 20 municípios da região não há registro de UTIs. Os três municípios apresentados no gráfico também são os únicos a possuir respiradores/ventiladores, conforme pode ser visto no gráfico abaixo. E embora haja uma quantidade maior de leitos em Caçador do que nas demais cidades, verifica-se que há menos respiradores do que leitos disponíveis. Em Joaçaba, por sua vez, nenhum dos respiradores/ventiladores está disponível para o SUS.

De acordo com o NSC Total, Santa Catarina possui até o momento 219 casos confirmados da doença em 39 cidades, mas nenhuma delas fica nessa região. Felizmente, as medidas restritivas até o momento parecem ter surtido o efeito desejado e impedido a disseminação do vírus. A região tem à disposição um total de 48 leitos (o que não significa que estejam vazios) e 39 respiradores/ventiladores para atender uma população de 377.909 habitantes, um indicador que leva a crer que com um possível crescimento de casos do covid-19 na região, a chance de colapsar o sistema de saúde é extremamente grande e preocupante. Por isso, é válido considerar que, apesar do risco econômico, o isolamento social deve prosseguir na região (e também no restante do Estado) para que não ocorra um colapso no sistema de saúde e que os casos que virem a ocorrer possam receber o tratamento adequado, mesmo que para isso tenham que sair de suas cidades para procurar um hospital.

 
 

REFERÊNCIAS

CADASTRO NACIONAL DE ESTABELECIMENTOS DE SAÚDE – CNES. Indicadores de leitos. Disponível em: <http://cnes2.datasus.gov.br/Mod_Ind_Leitos_Listar.asp?VCod_Leito=33&VTipo_Leito=2&VListar=1&VEstado=42&VMun=&VComp=>. Acesso em: 29/03/2020 às 14:00 hrs.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Cidades e Estados. Disponível em: < https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados.html> Acesso em: 29/03/2020 às 15:00 horas.

PEREIRA, RAFAEL HENRIQUE MORAES, FURTADO, BERNARDO ALVES. Dinâmica urbano-regional: rede urbana e suas interfaces. Brasília: Ipea, 2011. 490 p.

MAPA DE EVOLUÇÃO DO VÍRUS. Disponível em: < https://www.nsctotal.com.br/coronavirus/mapa-de-evolucao-do-virus > Acesso em: 31/03/2020 às 17 horas.

Tags: CidadeCOVID-19GeografiaGeografia RegionalGeografia UrbanaOeste CatarinenseRede urbanaSaúde públicaUrbanizaçãoVale do Rio do Peixe

Mobilizar ou imobilizar? A pandemia da Covid-19 e a incompreensão do que é o desenvolvimento

29/03/2020 13:00

No Brasil de Bolsonaro e Guedes, assim como de seu antecessor Michel Temer, o sucateamento dos meios de reprodução da força de trabalho – dentre os quais a saúde pública – foram a tônica dos 4 anos que se seguiram ao Golpe de Estado em 2016. A agenda de austeridade neoliberal realizada por esses governos impôs um teto de gastos à saúde pública (EC/95), que só em 2019 retirou R$ 20 bilhões do setor, negligenciando o caráter estratégico do SUS. Mesmo em meio à atual crise de saúde pública gerada pela pandemia do coronavírus, o presidente-vassalo do imperialismo tem negado seguidamente a necessidade de isolamento domiciliar por parte dos brasileiros, criando uma falsa dicotomia entre o desenvolvimento econômico e o resguardo das vidas humanas, exortando a população ao retorno de todas as atividades, incluindo escolas, comércio e serviços em geral. A pergunta que fazemos é: de fato existe a dicotomia entre desenvolvimento econômico e o resguardo da saúde através do isolamento social, combinado a outras medidas?

 

Nos últimos dias a Rússia iniciou obras para um complexo hospitalar de 80 mil metros quadrados em Moscou, com 500 leitos, sendo 250 UTIs e um laboratório próprio de infectologia para a análise das infecções, mobilizando 5.000 trabalhadores (Fonte: Sputnik, 2020). Ao mesmo tempo, a prefeitura moscovita decretou o isolamento domiciliar e o fechamento de comércio e serviços não-essenciais, para desacelerar a disseminação do vírus. Trata-se de ações similares às que tomaram as autoridades chinesas dias atrás. Na China, empresas privadas e estatais foram mobilizadas para a produção massiva e com preços controlados, de itens como respiradores, testes para Covid-19, máscaras, luvas e desinfectantes, além de 2 grandes hospitais, um deles com 1.000 leitos, em apenas 10 dias.

 

Canteiro de obras do complexo hospitalar de infectologia no distrito Troitsky-Novomoskovsky de Moscou. Fonte: Sputnik.

É obvio que há perdas econômicas imediatas com a redução da circulação e do consumo. Mas o exemplo chinês, assim como o russo, nos mostra que não há uma dicotomia absoluta, desde que o Estado entre em ação. Inovações surgem nas crises, são novos problemas cujas soluções se realizam através de novas químicas finas, engenharias de materiais, softwares, robótica etc.

 

Se por um lado é fundamental que se cessem as mobilidades em geral momentaneamente e assim, interações espaciais – ou seja, os contatos interpessoais que geram transformações progressistas naqueles que estão nela envolvidos (que geram, portanto, desenvolvimento) –, por outro lado, outras formas de interações espaciais e mobilidades são necessárias para combater o Covid-19, bem como para já preparar estrategicamente os países para outras possíveis epidemias/pandemias. Assim, a circulação massiva de pessoas, que potencialmente amplia a transmissão da doença (transportes de massa, circulação em praças de comércio e serviços, shoppings, escolas, universidades e outras aglomerações), dá lugar a mobilidades específicas para o combate à doença. Ações combinadas desse tipo têm sido essenciais para a saída mais rápida da crise, por alguns países. Inclusive, as 184 estações do metrô de Wuhan estão sendo gradativamente reabertas, equipadas com scanners térmicos para avaliar a temperatura dos passageiros, mostrando que a resposta está na aplicação de ciência e tecnologia.

 

Fato é que a mobilidade nunca cessa completamente. A máxima do “caráter absoluto do movimento e do caráter relativo do repouso”, na dialética materialista, é plausível. Além disso, mobilidades essenciais para o tratamento dos doentes, para a geração de conhecimentos, P&D, tecnologia e infraestrutura para se vencer o Covid-19 devem ser protegidas com todas as tecnologias de segurança disponíveis, inclusive com a prioridade dos testes de Covid-19 e o acompanhamento diário de seus trabalhadores. A massa da população, no entanto, deve ser protegida pelo isolamento e um programa de renda mínima adequado, até que haja um correto mapeamento dos focos da doença no território e assim, o controle do problema. Mas nada disso tem sido feito pelo governo brasileiro.

 

O governo Bolsonaro, acompanhado de governos estaduais e municipais, não faz desses exemplos a sua lição de casa. Os testes para constatação do Covid-19 – uma ferramenta fundamental para o isolamento e acompanhamento dos casos, tal como nos mostrou a Coréia do Sul, são insuficientes em quantidade. Faltam máscaras, material de limpeza, luvas, respiradores e leitos públicos de UTI em todo o território nacional. Não bastassem essas carências, o próprio presidente exorta as pessoas a retornarem totalmente às suas atividades.

 

É importante lembrar que o Brasil possui um déficit crescente na balança comercial ligado à saúde pública que vem acompanhando o período de 20 anos na esteira da construção do SUS. O déficit salta do patamar de US$ 3,0 bilhões em 1996, para US$ 12 bilhões em 2016 (GADELHA, 2018), mostrando, por um lado, como os governos populares de Lula da Silva e Dilma Rousseff esforçaram-se por ampliar e equipar o sistema, mas por outro, demonstra a sua fragilidade tecnológica. A próxima etapa seria justamente a de internalizar tecnologias para a produção própria de equipamentos médicos (joint-ventures, engenharia reversa etc.), com o fim de criar certa independência estratégica nesse setor. Vale ressaltar que nesse momento, pelo menos 50 países do mundo estão restringindo exportações de produtos avançados de saúde, obviamente dando preferência para o atendimento de suas necessidades internas. Os bolsonaristas/neoliberais ignoram completamente esse problema.

 

Além disso, que dizer de nossas cidades e seus sistemas de transporte e mobilidade? No Brasil, as pessoas permanecem muito tempo dentro do sistema de transporte, ou seja, muito tempo em trânsito, o que faz delas alvos potenciais de acidentes, stress, cansaço físico além do normal, condições nas quais pode haver redução de imunidade contra doenças, além é claro, de maiores chances de uma contaminação direta, já que estão expostas a uma grande variação no sobe-desce de passageiros. Na Região Metropolitana de Florianópolis, deslocamentos entre a cidade de São José, no continente e a Ilha de Santa Catarina, em condições de congestionamento, podem gerar até 4 horas de permanência dentro do sistema de transporte público (ida e volta), tal como ocorreu há dias atrás. Como pode, o governador de Santa Catarina, exortar as pessoas ao retorno de suas atividades, espremidas umas contra as outras no interior de um ônibus várias horas por dia?

 

Ademais, trata-se de um transporte público não subsidiado e, portanto, economicamente frágil em contextos como o atual. Além disso, não há institucionalidades, um “pessoal de inteligência” ligado à mobilidade, capaz de criar, flexibilizar e adaptar os serviços de transporte público a contextos de crise. Que dizer das pessoas que tem que deslocar grandes distâncias, em deslocamentos pendulares para efetuar suas compras em um contexto de quarentena? Toda a política de transportes e mobilidade que não foi feita anteriormente hoje mostra seus efeitos.

 

Ônibus lotado na Grande Florianópolis. Fonte: Ndmais.com.br.

Ora, ao contrário do que dizem as “falanges terraplanistas” não são as “altas densidades das cidades europeias” o grande propagador do vírus. Falam como se o Brasil estivesse protegido por sua dispersão urbana! Se assim fosse, Japão, Cingapura e Coréia do Sul, com suas hiperdensidades, já contariam centenas de milhares de infectados. Não se trata de uma análise de causa e efeito entre densidades urbanas e propagação do vírus. Se assim fosse, a cidade sul-coreana de Seul, com 16.257 hab./km² estaria mais infectada do que a estadunidense Nova Iorque com seus 7.166 hab./km². A ação do Estado sim, é decisiva.

 

Por fim, uma última palavra sobre as negligencias históricas de nossa sociedade. Em sociedades intensivas em conhecimento e tecnologia, o fator humano é um bem inestimável. Já nos dizia o grande Ignácio Rangel, que “um único dia perdido da força de trabalho, não pode ser recuperado” (RANGEL, 2005). Não deve haver, portanto, dicotomia entre desenvolvimento e proteção da vida humana. Ao contrário do que dizem os “novos malthusianos”, a proteção da vida está incluída na categoria de desenvolvimento. Contudo, somente sociedades planejadoras, que se organizam para o longo prazo, sabem da importância do fator humano para o seu desenvolvimento. Afinal, vidas perdidas são histórias que se vão, juntamente com valores-trabalho, inovação, idéias, além da própria vida, que não tem preço.

 

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RANGEL, Ignácio. Obras Reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

GADELHA, C.A.G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Revista Ciência e Saúde Coletiva, n. 23, 2018.

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Rodrigo Giraldi Cocco

Doutor em Geografia (UFSC)

Pós-Doutor pela Universidade de Guadalajara e pela UFSC

Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística (LABCIT-UFSC)

Núcleo de Estudos sobre Transportes (NETRANS-UNILA)

Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regionais e Infraestruturas (GEDRI-CNPq)

Tags: AcessibilidadeBrasilCOVID-19DesenvolvimentoMobilidadeTransporte Público

Transporte aéreo no Brasil em tempos de Covid-19: possibilidade de um novo mercado?

28/03/2020 13:00

De acordo com a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA), 2019 foi o primeiro ano após 2009 que a aviação obteve um crescimento anual inferior a 5%. Entretanto, outras variáveis se destacaram, como a pontualidade, taxa de ocupação e oferta de assentos, resultado dos aperfeiçoamentos logísticos que as companhias aéreas vêm adotando nos últimos anos por intermédio da indústria da aeronáutica. Contudo, do ano de 2019 para 2020, a imagem de aviões paralisados em aeroportos por todo o mundo vem tomando proporção conforme o avanço da COVID-19 (coronavírus). A pandemia que assola o planeta vem obrigando as companhias aéreas a adotarem medidas severas de contingenciamento de gastos. Dentre essas ações podemos destacar a paralização de voos internacionais e intercontinentais, além da alteração drástica da malha aérea e redução dos postos de emprego.

Figura 1: Aeroporto Logístico do Sul da Califórnia em Victorville, Califórnia.

Foto: Mark Ralston AFP/Getty Image.

Disponível em: Los Angeles Times, 2020

Embora a imagem acima seja condizente com o maior tráfego aéreo do mundo (E.U.A), no Brasil há de se tornar também realidade, sobretudo, após a publicação da ANAC no dia 27/03/2020, noticiando uma redução de 91% da malha aérea prevista pelas companhias aéreas brasileiras para o mesmo período sem anormalidades. A curva de casos do COVID-19 no Brasil inicia a escala para o momento de ápice, e um dos elementos fundamentais para diminuir o pico é a redução da circulação no país.

 

Ao observar como o vírus se instalou nos diferentes países do mundo, fica evidente que as menores ocorrências se deram justamente nos países que restringiram severamente a circulação de pessoas e mercadorias. Isto é, referem-se à diminuição quase que total dos meios de transporte em massa, dentre eles o transporte aéreo. Entretanto, a grande incógnita levantada pelas companhias, diante da paralisação das atividades, diz respeito aos custos operacionais obrigatórios com manutenção e pessoal.

 

Os mesmos agentes que buscam aplicar o modelo de livre mercado e intervenção mínima do Estado vão aos seus respectivos Governos solicitarem ajuda e resgate para o período de crise. Trata-se da maior crise que o setor teve desde seu início no primeiro quarto do século XX (do ponto de vista global). Por mais que seja contraditória pregar a menor atuação do Estado, mas ao mesmo tempo depender dele para se manter positiva, devemos ressaltar que as operações aéreas exigem cada vez mais da relação/interação a logística de Estado e a logística corporativa, atuando de forma combinada em prol de um maior bem-estar social, isto é, o Estado agir como órgão mais atuante a favor da população, e não apenas para as grandes corporações.

 

No Brasil, podemos destacar a atuação da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC) e da Secretaria da Aviação Civil (SAC), como os principais agentes normativos do setor, e também de órgãos representantes do meio corporativo como a Associação Brasileira da Aviação Civil (ABEAR). A aviação comercial brasileira sempre apresentou picos de movimentação desde o início das suas operações regulares na década de 1920 até o período recente, o qual se configura como período de transição de um segundo oligopólio (Gol, Latam e Azul) para a internacionalização do setor.

 

Entretanto, as respostas das companhias aéreas “brasileiras” têm sido semelhantes, como a redução de frota ativa (operando apenas as que possuem melhor custo-benefício), antecipação de férias, fechamento de bases (principalmente as regionais), licenciamento não-remunerada de trabalhadores, suspensão de voos internacionais, diminuição e corte de serviços de bordo, dentre outras ações (quem se beneficiou com isso foi o mercado financeiro, que assistiu a uma drástica desvalorização e recentemente uma nova valorização das ações das companhias). Por outro lado, o receio de viajar fez com que muitas viagens fossem canceladas ou adiadas, porém sem custos adicionais para o usuário.

 

O principal ponto de reflexão neste momento delicado de avanço do COVID-19 é exatamente a circulação que envolve o transporte aéreo. Isto é, as interações espaciais proporcionadas pela aviação numa escala local-global e vice-versa. Ora, numa operação aeroportuária envolvem-se agentes que circulam em diversos espaços, desde a tripulação a equipes de solo, manutenção, limpeza, catering, agentes aeroportuários, lanchonetes e restaurantes, transporte coletivo ou por aplicativo, dentre outros.

 

Isto significa que é incalculável a quantidade de pessoas e cargas que colaboram para a circulação dos fluxos aéreos. A estratégia de enxugamento das companhias brasileiras visou à concentração de voos nos seus hubs, isto é, nos principais aeroportos do estado paulista, exatamente no epicentro da pandemia no país. Se, por um lado, já foi comprovado que o COVID-19 chegou ao país por voos internacionais, por outro não se sabe quantas pessoas poderiam ter sido contaminadas. Diante do tempo de 3 a 5 dias para que o vírus se manifeste no corpo humano, muitas pessoas podem ter viajado sem ao menos saber que estavam contaminadas.

 

Isso serve de alerta. No que diz respeito à política de centralização das operações adotada pelas companhias aéreas brasileiras, trata-se de postura absolutamente equivocada, que tende a causar impactos negativos. Propor a ideia de conexão de voos exatamente onde há mais casos, só favorece uma maior circulação de pessoas (mesmo que a aviação esteja em números reduzidos). Veja-se, ainda, que as pessoas que trabalham nesses locais ficam mais vulneráveis ao vírus, e a chance de propagação é maior, principalmente devido ao contingente populacional da região.

 

Se observamos a quantidade de municípios com casos confirmados até o momento e a quantidade de voos que ocorreram no mês anterior, veremos que na sua maioria há um grande contingente populacional e circulação de pessoas, além da presença de aeroportos, basta vermos a figura abaixo. E em paralelo, temos a redução de 90% da malha área, concentrando voos exatamente em locais com grandes números de casos.

 

Figura 2. Mapa dos fluxos aéreos e do COVID-1

Embora seja recomendada a suspensão total da circulação como um todo, é necessário lembrar dos deslocamentos que precisam ser realizados de forma urgente, e que nessa relação espaço-tempo a aviação se destaca. Por isso, não é recomendável a suspensão completa, mas que seja ofertada uma demanda que seja apenas essencial. Contudo, o ato de concentrar voos em uma localidade, como estado de São Paulo, facilita a propagação do vírus. Uma boa estratégia seria a utilização de aeroportos mais isolados, com um menor número de pessoas circulando. O que estamos afirmando aqui é que o transporte aéreo (assim como outros meios de locomoção em massa) é um dos agentes responsáveis pela propagação do vírus, e o mesmo deve ser utilizado com o máximo de cautela e planejamento.

 

De antemão, o Covid-19 já deixou evidente alguns pontos que precisam ser revisados no que diz respeito à aviação comercial:

  • O Estado precisa intervir de forma mais consistente no setor aéreo, isto é, ser um agente mais ativo na aviação, buscando uma harmonia entre o meio corporativo e o usuário, diminuindo o domínio completo do mercado e estabelecendo mais regulação.

  • Revisão urgente dos algoritmos geradores das tarifas aéreas, pois nesse cenário houve uma queda considerável do preço das passagens, o que nos mostra que é possível uma redução do valor da passagem.

  • O Estado deve revisar o sistema de tributação sobre os serviços aeroportuários.

  • Num cenário de redução de custos, as fusões, associações, falências e aquisições serão cada vez mais visíveis, cabendo aos organismos de regulação a adoção de medidas que levem em conta os diferentes cenários, pois isso acarretará na concentração de capital, ao mesmo tempo em que postos de trabalho poderão ser extintos como forma de enxugamento da folha salarial.

  • Proteção aos trabalhadores do setor aéreo, tendo em vista a dinamicidade do setor diante das realidades socioeconômicas.

  • No caso brasileiro, por ter a flexibilidade 100% de capital estrangeiro nas empresas aéreas, assistiremos a fuga de capital para o meio corporativo (embora as companhias estejam na bolsa de valores).

  • Necessidade de revisar o sistema de hub e o fortalecimento (ou renascimento) da aviação regional quando houver a normalização da economia.

  • Revisar as políticas sanitaristas visando novas formas de conter possíveis pandemias futuras. Isto é, no âmbito nacional, por intermédio da Agência Brasileira de Vigilância Sanitária (ANVISA), criar um sistema que sirva de barreira para chegada de estrangeiros no país, tendo em vista que a maior parte dos contaminados do COVID-19 desembarcaram no Brasil em voos oriundos da Europa ou em navios de cruzeiro. Não se trata de proibir, mas de usar novas formas de precaução, como quarentena obrigatória em determinados casos, exames médicos rápidos, exigência de vacinas, dentre outros.

  • A retomada de crescimento econômico na escala nacional deveria se dar por intermédio do Estado. Entretanto, observando as formas debilitadas de atuação do Governo Federal, será algo que levará um bom tempo para a retomada de crescimento, principalmente diante da ausência de políticas desse tipo, como foi o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e o Plano de Integração Logística (PIL), que mostraram a capacidade de crescimento do PIB brasileiro entre 2003 e 2012. Logo, acredita-se que na aviação o ritmo também se dará de forma devagar e anêmica, tendo em vista os serviços que necessitam do deslocamento via modal aéreo, como o turismo, responsável por uma parcela considerável do PIB nacional.

  • A necessidade de isolamento demonstrou no setor que há a possibilidade de enxugamento de diversos postos de trabalho, principalmente aqueles que exigem o quantitativo humano. Parte deles são feitos à distância. Entretanto, no setor aéreo algumas dessas mudanças já eram visíveis, como despacho automático, check-in online, embarque por código, ações pelo celular, dentre outras ações que há menos de 10 anos eram realizadas por trabalhadores.

Há a necessidade do Estado Nacional atuar em conjunto com os Governos Estaduais no combate ao COVID-19 (o que não vem acontecendo no Brasil). A limitação da circulação de pessoas (a qual inclui o transporte aéreo) em alguns estados foi medida implementada drasticamente, justamente por se considerar que é a principal forma de propagação do vírus, e o transporte aéreo assume esse papel de transmissor (mesmo que indiretamente). Portanto, quanto mais cedo a população se precaver, mais cedo a economia voltará a funcionar normalmente, embora se saiba que a recuperação não se dará em questão de dias. Mas, para isso, o Estado (principalmente federal) deve tomar medidas para que a população mais carente tenha acesso a fontes de renda, deixando apenas a operacionalidade de serviços essenciais.

 

As sequelas que o covid-19 deixará para o setor aéreo ainda são incalculáveis. No entanto, a necessidade de rever a forma de atuação do setor aéreo também é urgente. Os grandes capitais sempre agem em prol da lucratividade. O Estado (via neoliberalismo) flexibiliza ao máximo as regras do setor de forma predatória em prol do livre comércio, mas pouco pensa no bem-estar social, mas, sim, em atender aos interesses das grandes corporações. Talvez esse seja o momento para repensarmos no tipo de aviação que queremos. O alarmismo que o setor vem tonalizando no último mês é reflexo de que as ações da logística de Estado e corporativa devem agir de forma combinada em prol da população, pois sem passageiros não há fluxo. E diante desse contexto convém resgatar o pensamento de Milton Santos: de que o espaço é formado por um conjunto indissociável de sistemas e objetos em interação.

 

A concentração de voos (sistema de hub-and-spoke) precisa ser revista para evitar possíveis aglomerações em áreas com alto índice de casos. No entanto, para o capital corporativo, quanto menor o custo, maior o lucro (mesmo em períodos de crise), objetivando uma maior centralização do capital. Longe, é claro, da preocupação com o bem-estar social das pessoas envolvidas nessas interações espaciais que são propagadas por intermédio do transporte aéreo.

 

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Me. Lucas Azeredo Rodrigues

Graduado em Geografia (UFFS)

Doutorando em Geografia (PPGG-UFSC)

Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística – LABCIT (UFSC)

Grupo de Estudos sobre Dinâmicas Regionais e Infraestrutura – GEDRI (CNPq)

Núcleo de Estudos sobre Transportes – NETRANS (UNILA)

ANEXOS

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